
Eu amamentei sozinha. Era meu corpo que ardia em febre e eu me assustava com o tamanho e a dureza dos meus seios quando o leite desceu. Foram meus mamilos que ficaram feridos nas primeiras semanas e eu chorava cada vez que ouvia o choro da minha filha, porque sabia que o único jeito de acalmá-la ia me causar uma dor tão dilacerante que fazia as contrações do parto parecerem nulas. Amamentei sozinha quando achei que não ia conseguir e fui buscar, buscar e buscar informação de qualidade pra continuar.
Eu amamentei sozinha por madrugadas sem fim. Era eu mesma, apesar de me sentir deslocada de mim. Era um emaranhado de hormônios ambulantes com metade do coração batendo noutro corpo que, do dia pra noite, atendia pelo meu nome. Me certifico, procuro registros embaçados na memória, no rolo da câmera, em escritos e mensagens dispersas: era mesmo eu. Paradoxalmente, sozinha e privada dos meus momentos de solitude.
Amamentei sozinha enquanto todos almoçavam e meu estômago roncava. Enquanto eu mesma me alimentava. Enquanto todos dormiam, meus olhos ardiam de sono e eu já não sabia dizer se era noite ou dia.
Amamentei sozinha com uma baita vontade de ir ao banheiro. Com cólica, dor de cabeça, torcicolo, enjoo e febre. Amamentei sozinha em casa, na rua, nas praças, na praia, e tive que ouvir os mais diversos comentários não solicitados sobre amamentação, aos quais respondi – ou não – sozinha.
Mas também amamentei sozinha quando a dor passou e comecei a sentir prazer ao alimentar e aconchegar minha bebê no peito. Quando a insônia me incomodava, mas ela pedia pra mamar e a ocitocina me relaxava até dormir. Naqueles momentos indescritíveis em que parecia que uma linha invisível ligava meu coração ao dela através da mamada. Em que eu pensava que, se existisse paraíso, devia ser exatamente aquele perfeito encaixe, quentinho e com o melhor cheiro do mundo.
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A importância da rede de apoio
Preciso falar agora sobre os muitos momentos da amamentação em que eu não estive sozinha. Quando, ao menor choro, meu companheiro se levantava, trocava a fralda da nossa filha e a trazia até mim pra mamar, eu não estava sozinha. Depois, ele colocava ela de volta no berço pra eu poder dormir mais um pouco. Eu não amamentei sozinha quando minha mãe e minha avó cozinhavam pra mim, pra eu ter forças de continuar produzindo leite. Quando minha sogra vinha ficar com minha bebê pra eu poder dormir um pouco ou tomar um banho tranquila. Quando desabafava sobre os desafios da amamentação e minhas amigas me acolhiam e me apoiavam.
Não amamentei sozinha no pós-parto imediato, quando minha amiga e obstetriz me mostrou como fazer a “pega”. E, dias depois, quando ela me apresentou uma consultora de amamentação maravilhosa, que curou meus mamilos feridos com muito cuidado e laser. Não amamentei sozinha quando pude escolher um pediatra pró-amamentação em livre demanda. E quando busquei uma consultora de amamentação feminista pra me ajudar com o desmame na hora em que achei adequado, por indicação de um grupo de amigas que estão vivendo a maternidade junto comigo.
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Não amamentei sozinha, porque pude adiar minha volta ao trabalho sem o risco de passar fome ou ser despejada de casa. Porque pudemos contratar alguém pra nos ajudar com o trabalho doméstico e guardar mais energia pra cuidar da nossa bebê. Não amamentei sozinha, porque tive acesso a informação de qualidade sobre amamentação. Porque, muito antes de eu sequer pensar em engravidar, outras mulheres fizeram mamaços mundo à fora e lutaram pelos nossos direitos.
Poderia dizer que tive sorte, mas tenho o mínimo de consciência de classe pra saber que sorte não garante nada no Brasil de hoje. Não amamentei sozinha, porque tive condições socioeconômicas pra contar com toda essa rede de apoio. E isso não deveria ser um privilégio, mas direito de toda e qualquer mãe. Porque amamentar é uma questão pessoal, mas “o pessoal é político”, já dizia Carol Hanish em 1969. É uma questão de saúde pública e tratá-la como tal significa respeitar e garantir mais – muito mais – apoio a todas as lactantes.