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5 de outubro de 2021

Puerpério: um tsunami invisível para quem está fora dele

Mães recém-nascidas precisam de tanto acolhimento quanto seus bebês

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Coluna Bruna sobre Puerpério

Estar no puerpério e tentar voltar à vida minimamente normal é como ter sobrevivido a um tsunami que te pegou completamente desprevenida. Nada te prepara pra isso, não importa o quanto tenham te alertado, a não ser, talvez, um puerpério anterior. Mas, curiosamente, aquela onda de tamanho inimaginável não atingiu seus vizinhos, seus amigos, ninguém à sua volta, inundou só a sua casa. 

Então, você sai na rua, pega o metrô, vai à farmácia ou ao supermercado, toda descabelada, com as roupas encharcadas, uma concha na orelha, estrela do mar grudada na testa e algas saindo dos bolsos, deixando um rastro molhado por onde passa e tenta agir como se tudo estivesse absolutamente normal. 

É aí que acontece o inesperado: o mundo ao seu redor compra o seu “disfarce”. Muitas pessoas que te encontram nesse estado, aparentemente, não enxergam o caos ambulante que agora atende pelo seu nome e agem como se estivesse tudo perfeitamente tranquilo – e, amiga, o puerpério pode ser qualquer coisa, pode até ser lindo, mas definitivamente não é sobre tranquilidade. É como se toda aquela bagunça marítima estivesse escondida debaixo da sua pele ou de alguma misteriosa camada de invisibilidade. 

A falta de empatia

Se falamos com estranhos ou apenas conhecidos, de passagem, é até compreensível que não notem qualquer vestígio da avalanche de cansaço e ebulição emocional pela qual você está passando. Quando se tratam de pessoas mais próximas, por mais empáticas que sejam, essa percepção pode variar muito de acordo com o que você deixa transparecer, principalmente, se elas nunca passaram por um puerpério. 

Eu mesma não tinha a menor noção do quão desafiador esse período poderia ser até me tornar mãe, e hoje tenho vontade de pedir desculpas às mulheres que foram mães antes de mim, por não ter dado mais atenção a elas.

Mas o que me deixava especialmente revoltada durante o primeiro mês da minha filha eram outras mães e pais que pareciam ter esquecido completamente dessa experiência e não mostravam a menor empatia em relação a mim e a minha recém-nascida família. Pessoas relativamente próximas que, em vez de oferecer alguma ajuda, acolhimento ou, simplesmente, nos deixarem passar por essa travessia no nosso canto, nos enchiam de críticas e cobranças. Como se fosse absurdo não estarmos sempre disponíveis para receber visitas ou participar de eventos sociais e estivéssemos mais reclusos propositalmente, para ofendê-los. Como se fosse sobre eles e não sobre nós.

Quando vinham essas cobranças, eu tinha vontade de colocar uma câmera em cima da cabeça pra gravar e mostrar pra eles a loucura dos meus dias: entre mamadas infinitas, tendo que lidar com fissuras nos seios e acertar a bendita da pega – que parece tão fácil, mas nem sempre é – madrugadas em claro, dias de sono sem fim, crises de choro do bebê – que desencadeiam crises existenciais nos adultos -, uma fome matadora – e, quando você finalmente senta pra comer, a criança quer mamar de novo – as tarefas domésticas seguem totalmente acumuladas – e eu ainda tinha rede de apoio, mas imagina sem? E quando sobram quaisquer cinco minutos livres, tudo o que você mais quer no mundo é apenas tirar uma sonequinha, simplesmente não há energia pra se arrumar pra sair ou fazer sala pra visita. Não é nada pessoal.

Sororidade materna

Leia mais: Como pode uma sociedade crescer sem cuidar das suas mães

O fato de aquelas pessoas não entenderem isso me parecia tão contraditório, porque foi justamente em outras mães e alguns pais que encontrei mais apoio para seguir, com a certeza de que não estava ficando louca, não estava fazendo nada de errado, não estava sozinha e de que aquele período maluco ia mesmo passar – apesar de ter duvidado muito disso na época. 

Logo nos primeiros dias da minha bebê, descobri no olhar atencioso de outras mães uma espécie de sororidade materna automática, uma conexão instantânea, que só parece ser possível entre pessoas que viveram intensamente a inigualável experiência do começo da vida, ainda que sejam completas desconhecidas. A autora deste texto, que uma amiga me indicou e que, infelizmente, está em inglês, fala  basicamente a mesma coisa.

Hoje, vários meses depois de sobreviver ao tsunami, sei que a memória nos trai e que realmente esquecemos os pormenores daqueles dias. As angústias que nos tiravam o sono se tornam pequenas – como muitas crises da infância ou da adolescência nos parecem bobas agora – e, muitas vezes, até conseguimos pensar em ter um segundo filho sem grandes sobressaltos. Mas me parece quase impossível esquecer que aquele foi um momento desafiador, a ponto de não ter qualquer empatia por quem esteja imersa nessas águas revoltas. 

Afinal, é preciso falar sobre o óbvio surpreendente de que, assim como não se nasce mulher, também não se nasce mãe, torna-se – o mesmo vale para os pais presentes, é claro, ainda que com uma dose hormonal menor. Como na adolescência, na gestação e no pós-parto, os hormônios estão à flor da pele e tudo está mudando no seu corpo e na sua cabeça, mas de uma forma ainda mais rápida do que na passagem da infância para a juventude. Seu filho nasce e sua maneira de ver o mundo pode virar de ponta cabeça, literalmente, dum dia pro outro, como num tsunami. 

Uma junção entre maternidade e adolescência

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Ao olhar atentamente para mulheres no puerpério, a antropóloga médica estadunidense Dana Raphael criou, em 1973, o termo “matrescence”, em inglês, que pode ser traduzido como “matrescência”, uma junção entre maternidade e adolescência, para dar conta de explicar a complexidade das transformações físicas, psíquicas e emocionais vividas pelas recém-mães. No entanto, esse termo tão preciso quase caiu no esquecimento, até ser resgatado e difundido, mais recentemente, por pessoas realmente interessadas em compreender os anseios das mães, como a psiquiatra Alexandra Sacks (que falou sobre isso nesta conferência para o TED Talks). 

Penso que, talvez, aquelas mães que tanto me magoaram no puerpério, não tiveram a chance de mergulhar nos seus próprios processos de travessia em direção à maternidade, possivelmente nunca falaram sobre o assunto e, de alguma forma, perderam, então, a conexão com aquela sororidade materna que me parecia tão espontânea.

Com o desenvolvimento das sucessivas ondas feministas, acredito que estamos, aos poucos, direcionando mais foco para questões que afetam tão intimamente as vidas de muitas mulheres, como é o caso da matrescência – e abrindo espaços para que se estude e se discuta sobre elas com seriedade. Precisamos falar sobre puerpério, não para que este se torne um período tranquilo e sem grandes ondas, mas para que tenhamos o direito de vivê-lo como desejemos e possamos contar com todo o cuidado e apoio que o princípio de uma vida merece, seja para o bebê que nasce ou para a mulher que renasce como mãe.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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