A Organização das Nações Unidas vem trabalhando desde de antes de 1993 (ano em que foi instituído o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência) e depois a partir de 2006 (ano em que a Assembléia Geral da ONU adotou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência) para a criação de um mundo acessível, sustentável e que inclua a condição de deficiência.
Na total contramão desse esforço mundial, o governo federal brasileiro tem, desde 2018, um histórico de sucessivos decretos e medidas autoritárias que acabou com leis e políticas públicas, conquistadas há mais de duas décadas. E outros direitos ainda estão fortemente ameaçados! O estrago só não foi maior porque os movimentos sociais de luta pelos direitos das pessoas com deficiência se manifestaram e continuam resistindo – bravamente e de forma ativa – junto aos órgãos de defesa dos direitos das pessoas com deficiência.
A mais recente medida, que atrasará o desenvolvimento do processo de inclusão social de 14% da população com deficiência no Brasil, foi a redução das verbas disponibilizadas ao Programa Nacional de Apoio à Saúde da Pessoa com Deficiência em 71%, em relação ao ano passado.
O programa tem a finalidade de captar e canalizar recursos para ações e serviços de reabilitação e tratamento das pessoas com deficiências físicas, auditivas, visuais, mentais (problemas psíquicos), intelectuais (Síndrome de Down, do espectro autista, entre outras), múltiplas (união de duas ou mais deficiências) e surdocegueira (deficiência única que afeta visão e audição) por meio da prevenção, diagnóstico precoce, tratamento, reabilitação e adaptação de órteses, próteses e meios auxiliares de locomoção, em todo o ciclo da vida.
Segundo a Portaria Interministerial do Governo Federal Nº 2.912, publicada em outubro, o valor máximo previsto hoje ao programa é de R$ 34.210.039,00, valor bem menor que os R$ 117.487.728,00 relativos a 2019. Para Lenir Santos, membro da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down e do Conselho Nacional de Saúde, com a retirada de recursos, inúmeros projetos que são essenciais para pessoas com deficiência serão prejudicados.
Em entrevista para O Globo, ela explica que o SUS (Sistema Único de Saúde) já tem pouquíssimos recursos para poder financiar ações, desta forma a área da deficiência fica apagada! Para tentar impedir mais esta afronta aos direitos das pessoas com deficiência, o deputado federal Rafael Motta (PSB-RN) protocolou em outubro um requerimento cobrando informações do Ministério da Saúde sobre a redução dos investimentos no Programa Nacional de Apoio à Saúde da Pessoa com Deficiência. Por isso, a sociedade precisa acompanhar ações como esta para se unir contra o desmonte das políticas públicas relativas às pessoas com deficiência.
Desmonte de políticas públicas é o maior da história
As severas ameaças às perdas de direitos começaram com a reforma da previdência aprovada em 2018. E uma das maiores perdas de direitos foi na aposentadoria por invalidez (agora chamada de aposentadoria por incapacidade permanente).
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Em 16 de setembro de 2020, foram publicadas no Diário Oficial da União novas normas para a concessão, manutenção e a revisão do Benefício de Prestação Continuada pago a idosos acima de 65 anos e pessoas de baixa renda com algum tipo de deficiência. Ficou definido que, para se ter direito ao benefício, no valor mensal de um salário mínimo de R$ 1.045,00, é necessário que o rendimento bruto mensal por pessoa da família, seja de até 1/4 do salário mínimo (25%), o que corresponde a R$ 261,25. Tal decisão leva praticamente todas as pessoas com deficiência a perder o benefício, afinal ninguém conseguiria sobreviver com uma renda mensal em valor tão irrisório.
E logo depois outro direito ameaçado foi o acesso aos medicamentos de alto custo por via judicial, dos quais fazem uso muitas pessoas com deficiências raras e graves, atualmente. Essa proposta acabou não sendo aprovada, graças à forte pressão social. Entretanto, mais uma vez, o governo Bolsonaro evidenciou sua intenção de desmanche da rede de direitos criada, com muito esforço coletivo, para as pessoas com deficiência.
Este desmanche de direitos se intensificou a partir de janeiro de 2019. Pois, logo no dia seguinte à posse de Bolsonaro, houve a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação, que havia sido criada em 2004 com objetivo de dedicar atenção aos grupos historicamente excluídos como as pessoas com deficiência.
Os temas relativos a esta parcela significativa da população brasileira, abrangidos por esta Secretaria, migraram para a Diretoria de Educação Especial, dentro de uma nova Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação. Este foi o primeiro sinal de alerta para a gigantesca tentativa de desmonte da educação inclusiva, que, infelizmente, se concretizou BRUTALMENTE em 2020, e trouxe prejuízos gigantescos.
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Para tentar barrar o decreto da exclusão na educação foi preciso que o movimento social das pessoas com deficiência que acreditam na inclusão acionasse o Supremo Tribunal Federal, e somente dia 01 de dezembro, o ministro Dias Toffoli concedeu uma liminar para suspender o decreto. Está prevista para dia 11 de dezembro uma votação em plenário para decidir o futuro dos alunos com deficiência no Brasil. Portanto, a grande ameaça continua, pois o governo federal já deixou bem claro que é totalmente contra a inclusão de alunos com deficiência nas escolas!
Seguindo a linha de desmonte dos direitos conquistados, no mês de março, a Secretária Nacional da Pessoa com Deficiência, Priscilla Gaspar (mulher com surdez, mas que tem uma visão equivocada sobre o processo de inclusão das pessoas com deficiência) declarou que via como privilégio a isenção de impostos das pessoas com deficiência para compra de automóvel.
Declaração essa completamente absurda, segundo os movimentos sociais, não apenas porque os carros precisam ser adaptados (e isto custa bem caro!) para que uma pessoa com deficiência física, por exemplo, consiga dirigir. Mas também porque a compra de carros, infelizmente, ainda é uma alternativa para quem não consegue usar o transporte público (ônibus, metrôs, trens) completamente sem acessibilidade em várias regiões do país.
Depois, em abril de 2019, novamente soou o alarme em relação ao desmonte de direitos, com a assinatura por Bolsonaro do Decreto 9.759, que extinguiu as instâncias colegiadas de participação social no âmbito da administração pública federal. Dentre elas, estava o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Somente após forte repercussão e da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6121, proposta por partidos de oposição junto com a sociedade civil, o tema foi parar no STF (Supremo Tribunal Federal), que em junho se posicionou pela suspensão liminar do referido decreto.
Porém, em setembro de 2019, justamente no mês marcado pelo Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, o governo federal publicou mais um documento que incentiva a exclusão das pessoas com deficiência. Foi o Decreto n° 10.014, que alterou a regulamentação da Lei de Acessibilidade nº 10.048 de 2000. Com este decreto Bolsonaro exclui a obrigação de acessibilidade em altares e batistérios de qualquer religião, além de isentar de acessibilidade os veículos de empresas de transporte de fretamento e turismo.
Mas o ponto mais terrível deste decreto excludente foi não considerar ACESSIBILIDADE às piscinas, os andares de recreação, os salão de festas e de reuniões, as saunas e os banheiros, as quadras esportivas, as portarias, os estacionamentos e as garagens, entre outras partes das áreas internas ou externas de uso comum das edificações de uso privado multifamiliar e das de uso coletivo. Ação que vai completamente contra o texto da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Nº 13.146/2015), que garante acessibilidade às pessoas com deficiência em todos os locais do Brasil! Conheça o decreto da exclusão.
“Ameaças reais e concretas sem precedentes”
Como se não bastasse todos estes crimes contra a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (documento equivalente à emenda constitucional), em dezembro de 2019 – justo no Dia Internacional das Pessoas com Deficiência – Bolsonaro enviou ao Congresso um projeto para acabar com as cotas para trabalhadores com deficiência nas empresas brasileiras.
O Projeto de Lei 6159, que desmonta a Lei de Cotas, em termos práticos, pois desobriga as empresas de contratarem pessoas com deficiência em troca do pagamento de uma multa, e impõe inúmeras dificuldades para o acesso ao auxílio inclusão.
Foi um golpe tão duro que gerou ampla repercussão nacional, e o movimento das pessoas com deficiência conseguiu, no final de 2019, ao menos travar a tramitação em urgência do projeto proposto pelo Ministério da Economia. Porém, o documento ainda está em processo de tramitação e a ameaça de acabar com mais um direito continua!
Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, Desembargador do Trabalho (e ativista social com cegueira), destacou durante o 13º Encontro Anual do Espaço da Cidadania e seus Parceiros pela Inclusão, as políticas do governo federal que acabam com a Educação Inclusiva e o projeto de lei que enterra a Lei de Cotas: “são ameaças bombásticas, são ameaças reais e concretas sem precedentes. Estes direitos sempre foram ameaçados, mas nunca pelo poder executivo. E a base de apoio do Governo é muito forte. A aliança que o governo faz com o centrão é uma ameaça concreta para a Lei de Cotas, e séria”.
E mesmo com projeto que acaba com a Lei de Cotas, parado no Congresso desde março de 2020, o país reduziu 4% dos empregos dos trabalhadores com deficiência. Em 2020 foram mais de 21 mil empregos a menos do que em dezembro do ano passado segundo dados do Dieese a partir de dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados. Imaginem, então, se este projeto que acaba com a Lei de Cotas for aprovado… Seria uma desgraça!
Outros direitos continuam ameaçados
Outro direito ameaçado pelo governo federal em 2020 foi em relação às cotas nas universidades para estudantes com deficiência, negros e indígenas em pós-graduações, mestrados e doutorados de Instituições Federais de Ensino Superior. Mas o Ministério da Educação derrubou a portaria assinada pelo ex-ministro Abraham Weintraub em junho.
Porém, a secretária nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Priscilla Gaspar, errou mais uma vez, ao dizer que achava privilégio um direito conquistado pelo movimento social. Ela publicou no portal da Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República que comemorava o fim das cotas: “MEC acaba com cotas nos cursos de pós-graduação. Seleção deve voltar a se basear em critérios objetivos, sem privilégios direcionados”.
Além disso, muitos direitos das pessoas com deficiência não são conquistados e colocados em prática, devido a 14 Projetos de Lei parados no Congresso Nacional até hoje. Saiba quais são aqui.
Resistir para existir!
Por mais incrível que pareça, a cada pedrada que levo na cara ao ver desmoronar tantos direitos conquistados com garra e coragem, mais vontade eu tenho de continuar lutando por uma sociedade que reconheça a diversidade de corpos e mentes como a maior riqueza humana!
Lembro de cada seminário em que realizei coberturas jornalísticas, cada entrevista que fiz, cada reportagem de denúncia que escrevi, e principalmente, cada cada palavra que falei em minhas palestras e vídeos sobre como é estar VIVA em um país que insiste em tentar apagar a existência da condição mais natural de todos os seres humanos: a deficiência! Afinal, a qualquer milésimo de segundo, uma pessoa pode adquirir uma deficiência por meio de acidente ou violência. E também pode nascer com uma deficiência por uma mutação genética.
Durante mais de 20 anos, eu acompanhei a trajetória de conquistas, derrotas e, principalmente, dificuldades que várias pessoas com deficiência passaram e ainda passam diariamente. Os saudosos amigos com deficiência: Rui Bianchi do Nascimento, Sérgio Cunha Lisbôa, Maria de Lurdes Guarda, Araci Nallin, Maria Neide de Palma, Sérgio Del Grande, Messias Barbosa, e muitos outros de igual importância, viveram cada dia para plantar árvores da inclusão, da cidadania, da autonomia, da independência, da tolerância, da diversidade, da fraternidade, do amor, da solidariedade, da união, da gratidão, da persistência, da fé e da PAZ.
E os queridos amigos e amigas com deficiência: Maria Amélia Galan, Gilberto Frachetta, Ana Rita de Paula, Elza Ambrózio, Suely Satow, Claudia Sofia Pereira, Doralice Simões, Lia Crespo, Flavia de Paiva Vital, Elisabete Araki, Tuca Munhoz, Francilene Rodrigues, Sidney Tobias de Souza, Salete Fernandes, Juovelina Nunes, João Bentin, Marco Antonio Pellegrini, Izabel Maior, e muitos outros de igual importância, vivem hoje para polinizar cada semente de inclusão plantada por seus amigos.
E hoje, eu e muitas outras pessoas com deficiência começaram a sentir o perfume de suas flores, mas só nossos filhos, sobrinhos, primos, netos, e bisnetos colherão seus primeiros frutos. Para manter as árvores da inclusão vivas é preciso cultivá-las e preservá-las sempre. Afofar o solo, cortar as ervas daninhas, matar os parasitas, regar, adubar, tirar as folhas mortas. E deixar o solo, a chuva, e o vento agirem na medida certa do amanhecer ao anoitecer. É uma intensa e eterna vigília. É uma ação que requer muita perseverança, tenacidade, esperança, força de vontade, determinação e, principalmente, fé em abundância.
Quando vemos garotos e garotas, jovens e crianças com deficiência, que vestiram a camisa da inclusão pela primeira vez – mas já abraçaram os troncos dessas árvores com tanta garra – creio que devemos sentir muita alegria em saber que as sombras frondosas das antigas inspiraram o plantio de novas mudas. Mas é preciso urgentemente que esses meninos e meninas com deficiência NUNCA se esqueçam da floresta que seus antepassados plantaram.
Cada árvore tem uma história, uma raiz, uma idade, uma trajetória. Deve-se sempre ouvir – atentamente e respeitosamente – o que estes antepassados têm a dizer sobre as batalhas que enfrentaram pela inclusão, pois muitas guerras ainda serão vencidas. Cada folhinha nova revigora essa floresta, mas sem raízes que as sustentem com firmeza, nenhuma flor nascerá e nenhum fruto surgirá. Os jovens guerreiros da inclusão têm a obrigação de aprender as lições com quem deixou suas marcas de sangue pelas estradas da diversidade.
E que 2022 chegue logo para nos livrarmos deste governo federal ditador, retrógrado, assistencialista, piegas, moralista, preconceituoso, e discriminatório. Mas enquanto a liberdade lá no Congresso Nacional não chega, não podemos baixar a guarda! Precisamos LUTAR a cada dia para que o lema “Nada sobre Nós, sem Nós”, não seja apagado e nossos direitos derrubados!! Força e coragem neste Dia Internacional das Pessoas com Deficiência!