Você sabia que desde 1992 a ONU (Organização das Nações Unidas) instituiu 3 de dezembro como o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência? E em 2019, esta data ainda serve de alerta para pensarmos se o mundo proporciona às mulheres com deficiência condições políticas, econômicas, sociais, educacionais, habitacionais e de saúde de viverem em pé de igualdade em direitos humanos com as mulheres que não têm alguma deficiência. Vejamos…
Durante minha trajetória profissional entrevistei algumas mulheres com deficiência para falar como se sentiam em relação ao seu corpo, sua imagem, os relacionamentos e, principalmente, sobre situações de preconceito e discriminação que vivenciaram.
Um dos depoimentos mais marcantes foi o de Claudia Maximino, fundadora da Associação Brasileira dos Portadores da Síndrome da Talidomida. “No antigo ginásio ouvi um rapaz dizer: ela é bonita, mas não namoro porque não tem mão! Na época, só soube dizer que ele não tinha cabeça! Hoje eu nem responderia, e agradeceria se ele pudesse nem me olhar!”, contou.
Leia mais: O que falta em uma mulher com deficiência?
Claudia me contou que quando ela nasceu, em 1962, tudo era conquistado no grito. “Quando fui para uma escola municipal, cheguei a perder o quinto ano do ensino fundamental. Pediram que eu saísse no meio do ano letivo porque me colocaram em uma sala no terceiro andar. O professor de educação física tinha que me carregar no colo, o que segundo a diretora, provocava um ‘tumulto’. Foi a primeira e última vez que eu permiti isso. Aprendi a denunciar!”.
As denúncias são cada vez mais necessárias, pois para Claudia, o preconceito ainda impera em nossa sociedade. Eu acrescento aí o sexismo, o machismo e, principalmente, o capacitismo presentes diariamente na vida das mulheres com deficiência, como abordei na minha coluna de novembro: O que é capacitismo?
Vale lembrar novamente aqui que este conceito abrange a discriminação por motivo da condição de deficiência, tanto por meio da opressão ativa e deliberada (insultos, considerações negativas, arquitetura ou meios de comunicação inacessíveis) quanto pela opressão passiva (como reservar às pessoas com deficiência tratamento de pena, de inferioridade e/ou subalternidade).
Foi exatamente isso o que aconteceu em 2018 com Laura Leandro Gera, que tem 16 anos e deficiência visual, e quis realizar o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) como treineira pela primeira vez. O juiz federal Ubirajara Teixeira, de Juiz de Fora (MG), determinou ser possível e obrigatório que alunos com deficiência usem computador em concursos, de acordo com a Lei Brasileira de Inclusão n° 13.146, que está em vigor desde 2015.
No entanto, a vitória da mãe de Laura (a médica Rosângela Gera) durou pouco. Pois em 24 de outubro deste ano a juíza Viviany de Paula Arruda cancelou a decisão que garantia o acesso de Laura ao computador, invocando o princípio da “isonomia e segurança”. Hoje Rosângela ainda luta para que sua filha possa usar recursos digitais de acessibilidade, como software para leitura e audiodescrição.
A discriminação capacitista pela qual Laura passou é mais frequente do que você possa imaginar. Pense comigo… O seu prédio tem elevador com os números em sistema Braille? A escola pública que a sua filha frequenta tem intérprete da língua brasileira de sinais? O caixa do seu banco é mais baixo, em uma altura compatível para quem usa cadeira de rodas?
A rua onde você mora tem as guias das calçadas rebaixadas? O banheiro do seu clube é adaptado com barras de apoio, portas largas e vaso sanitário adequado para quem usa cadeira de rodas? Os hospitais públicos do seu estado são acessíveis para quem tem deficiência?
Os ônibus que te levam até o seu trabalho têm plataforma elevatória ou entrada no mesmo nível da calçada? As linhas de metrô têm sinalização visual em língua portuguesa e língua brasileira de sinais para que pessoas com surdez se orientem? O cinema que você vai aos sábados tem o recurso de áudio-descrição para pessoas com cegueira?
A unidade básica de saúde da sua cidade tem intérprete da língua brasileira de sinais? As calçadas têm um piso em alto relevo (podo tátil) para guiar as mulheres com cegueira que se locomovem sozinhas? O museu que você freqüenta tem rampas de acesso para quem usa cadeira de rodas?
Os bebedouros do parque de diversões que você leva os filhos para passear são mais baixo, compatível com a altura de quem usa cadeira de rodas? A pista de dança daquele bar é acessível a todos, ou quem tem dificuldades para andar ainda precisa ser carregado pelos seguranças?
O seu filho tem colegas com surdez na sala de aula? O shopping que você frequenta tem vagas no estacionamento localizadas perto da entrada e com um distanciamento suficiente para que uma mulher com deficiência física consiga sair sozinha do carro?
Espero que várias das suas respostas tenham sido positivas, pois em pleno século 21 a realidade das mulheres com deficiência deveria ter evoluído substancialmente. Mas, infelizmente, ainda temos participação social diminuída e passamos por graves situações de marginalização e isolamento social diariamente devido à falta de acessibilidade física, comunicacional e comportamental.
Para constatar a minha afirmação, basta ler o primeiro relatório sobre questões relacionadas às pessoas com deficiência e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que a ONU lançou em 2018. Os dados deste relatório evidenciam que as mulheres com deficiência (física, auditiva, visual, intelectual, múltipla, mental e surdocegueira) correm três vezes mais risco de sofrer violência sexual no mundo, assim como tem três vezes mais probabilidade de ser analfabeta e estão duas vezes menos propensas a usar a internet. Além disso, elas também possuem três vezes mais chances que suas necessidades de assistência médica não sejam atendidas.
Já em relação ao mercado de trabalho, a situação é bem crítica, pois as mulheres com deficiência possuem duas vezes menos chances de serem empregadas, assim como menos chances de trabalhar como legisladoras, altas funcionárias ou gerentes. E a situação pode piorar com o desmonte da Lei de Cotas para contratação de profissionais com deficiência pelas empresas proposto pelo Ministério da Economia.
Apesar do arcabouço legal internacional ter tido melhoras consideráveis, como a criação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a realidade ainda é alarmante, principalmente em países com grande desigualdade social, como o Brasil.
O que reivindicam as mulheres com deficiência
Segundo a ONU, para alcançar plenamente a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas com deficiência, os esforços devem se concentrar em:
• Abordar as necessidades e perspectivas de mulheres e meninas com deficiência nas estratégias nacionais ou planos de ação sobre deficiência e gênero;
• Desenvolver políticas e programas voltados para mulheres e meninas com deficiência, visando sua participação plena e igualitária na sociedade;
• Apoiar o empoderamento de mulheres e meninas com deficiência, investindo em sua educação e apoiando sua transição da escola para o trabalho;
• Aumentar a conscientização sobre as necessidades de mulheres e meninas com deficiência e eliminar o estigma e a discriminação contra elas;
• Aprimorar a coleta, divulgação e análise de dados sobre mulheres e meninas com deficiência e desagregar e disseminar dados por sexo, idade e deficiência.
O Brasil precisa adotar estas medidas, pois segundo o IBGE, das 45,6 milhões de pessoas que possuem algum tipo de deficiência no país, 25,8 milhões são mulheres e 19,8 milhões são homens. E é importante frisar que este levantamento contabiliza somente mulheres com deficiência ouvidas em domicílio, desconsiderando a grande parcela que vive em situação de rua ou isoladas em instituições, passando por violência sexual constantemente.
Leia mais: Qual o lugar de fala das mulheres com deficiência
Para evitar estes altos índices de violência e abandono das mulheres com deficiência, o principal objetivo dos movimentos sociais das mulheres com deficiência hoje é discutir propostas de intervenções coletivas por meio de políticas públicas. O foco está na transformação de uma sociedade paternalista, com ideologia assistencialista e capacitista, em uma sociedade em prol dos direitos humanos e da cidadania. Onde a participação plena das pessoas com deficiência com autonomia, lugar de fala e protagonismo seja uma constante.
Por isso, é muito importante que o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência não seja utilizado para reforçar ideias de caridade e/ou assistencialismo. As mulheres com deficiência devem decidir o que falar neste dia! Por isso, o lema do nosso movimento político e social é “Nada sobre nós, sem nós!”
Para mais informações sobre o tema:
- Artigos Nenhum direito pode ser subtraído e Movimento político das pessoas com deficiência, ambos de Izabel de Loureiro Maior, membro do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro;
- Relatório da ONU sobre deficiência e desenvolvimento, que aponta lacunas na inclusão;
- Entrevista de Vitória Bernardes, psicóloga integrante do Conselho Nacional de Saúde e do Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência;
- Debate sobre a invisibilidade da mulher com deficiência nas políticas de saúde;
- Reportagem O que pensam mulheres com deficiência sobre o papel da mulher na sociedade
- Relatório Mundial sobre a Deficiência;
- Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência