
Quando a gente nasce, demora um tempo até atingirmos consciência de que somos seres independentes; de que nossos corpos não estão mais interligados com o de nossas mães. É a partir do segundo ou terceiro ano de vida que temos essa noção. A percepção do “eu”, no entanto, vem acompanhada da percepção do outro. E a construção da autoimagem passa também pela observação do mundo que nos cerca.
Observamos o que está ao nosso redor e absorvemos o que nos dizem, e, assim, vamos formando nossa identidade, socializada pelas visões de quem já estava aqui nesse mundo há um bocado de tempo antes de nós. Sem perceber, reproduzimos padrões socialmente criados e institucionalizados, e a gordofobia é um deles.
Certa vez eu estava a caminho da escola com outros dois coleguinhas de turma, um menino e uma menina; isso foi na 2ª série. Em um determinado momento, eles me contaram que me chamavam, pelas costas, de “galera”, porque meu tamanho valia pelo de muitas crianças. Ao contar, às gargalhadas, a dupla fez um gesto, abrindo e girando os braços ao redor do corpo. Eu ri com eles, sem ter consciência do que aquilo significava ao certo, mas percebendo o tom pejorativo e jocoso da fala. Àquela altura eu não havia desenvolvido nenhum mecanismo de defesa em relação a esse tipo de abordagem, e absorvi o insulto que veio em forma de piada.
A dupla talvez nem soubesse exatamente o que estava fazendo, mas reproduziu um comportamento que certamente já tinha observado: o de que era ok rir das pessoas gordas e, além disso, era ok também abordá-las diretamente com suas importunações. Mas, chamar – apenas – de bullying é uma forma de mascarar a gordofobia, socialmente naturalizada. Isso piora ainda mais quando o corpo gordo da menina começa a ser um empecilho para que ela atinja tudo aquilo que foi programado pra ela: uma vida plena e feliz que só pode ser concretizada em um matrimônio cisheteronormativo (contém – MUITA – ironia).
“Gorda baleia, saco de areia, comeu banana podre e morreu de caganeira” – Versos entoados por crianças para aquelas que eles já perceberam com corpos maiores que os seus –
Quando se percebe na menina os primeiros traços de mulher, as coerções do patriarcado sobre seu corpo começam a atuar fortemente. Começa muito cedo, lá pelos 9, 10 anos, e em alguns casos muito antes. Acontece que, nesse momento da infância, ser gorda passa a ser mais uma barreira para a doutrinação do corpo feminino, que agora deve ser preparado para se encaixar nos moldes daquilo que é esperado dentro da socialização patriarcal.
A relação da gordofobia com o patriarcado, o capital e a mídia, já tratamos aqui na coluna. No entanto, se hoje conseguimos debater os recortes de gênero dentro das dinâmicas do preconceito, essa discussão também precisa chegar às garotas, que, além de terem que aprender uma forma totalmente diferente dos meninos de como se sentar, vestir, comer, falar – e de como não fazer todas essas coisas –, também precisam começar a se preocupar com o peso. Afinal, “gorda não arruma namorado!”, e assim vamos nos acostumando a performar uma feminilidade que, em termos contemporâneos, tem a magreza como ponto de partida.
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Nessa lógica, pouco adiantam unhas feitas e esmaltadas, cabelos sempre alinhados, seios firmes – porém nunca expostos -, pelos inexistentes – em nenhuma parte do corpo – e a supressão da menstruação, se tudo isso estiver em um corpo gordo. A performance de feminilidade que serve de troféu ao masculino (também performado) é magra, leve, etérea; um holograma. Com tanta pressão, a menina passa então a se ver em uma rotina que alterna privações e provações com o próprio corpo, e passa a balizar sua relação com o mundo a partir dessas contradições.
Da falta de mecanismo de defesa na infância à coerção de seu jovem corpo aos moldes da cisheteronormatividade patriarcal, em um espaço tão curto de tempo, crescemos achando que não ter um corpo magro autoriza que nossas existências sejam invadidas e rechaçadas, publicamente, o tempo todo.
O sentimento de culpa, de vergonha e de medo que essas abordagens voltem passam a ser constantes. E todo o resto da vida da gente é permeado pela conformação desse comportamento ou por sua negação, muitas vezes, violenta; seja com as pessoas ao nosso redor, seja com nós mesmas. Por isso, cuidar das nossas meninas é urgente, assim como cuidar das meninas que habitam em cada uma de nós.