Começa como um sonho: você vê corpos diferentes do padrão na propaganda da marca e se anima. Um “finalmente!” passa pela sua cabeça. Nas fotos do catálogo, as modelos parecem estar super confortáveis com as peças, e os textos que acompanham falam sobre como você pode usar a roupa que você quiser, porque aquela marca atende a tamanhos maiores. Você se empolga, seus olhos brilham, rola o feed pra cima e pra baixo já fazendo planos de como irá gastar seu rico dinheiro em roupas exclusivas, que se dizem inclusivas e que parecem entender que moda, estilo, sensualidade ou beleza não tem tamanho… Mas de repente você acorda, e o sonho se torna um pesadelo.
Basta uma acessada no site da marca para saber que os tais tamanho maiores dos quais a marca fala não são tão maiores assim e mal servem numa banda da sua bunda. O plus size anunciado, na verdade, é o 48, o famoso GG das marcas tradicionais, que estrategicamente foi fotografado e divulgado como disponível para dar a impressão de que mulheres como nós temos alguma chance de nos vestir com aquilo que quisermos e não com apenas o que nos cabe, quando cabe. O que tem de diferente nesse processo? O ciclo de medo, vergonha, frustração e choro quando uma marca diz que vai vestir seu corpo e não o faz é muito mais dolorido.
E a gente não tá falando de itens de moda, não, tendências Paris-Milão. Falamos aqui de itens básicos do vestuário feminino ocidental contemporâneo, como uma calcinha e um sutiã, que deveriam dar sustentação, nos proteger e servir de base para o restante do guarda-roupas. Não à toa, um dos estereótipos da gordofobia é justamente o da gorda desleixada, que não sabe se vestir, cujas roupas estão sempre apertadas, botões estourando, zíperes abertos, barriga de fora e por aí vai. Como sempre, a culpa recai sobre quem sofre a violência, não sobre quem violenta:
“Tudo bem ser gorde, mas precisa se vestir de qualquer jeito?”, perguntam com o tom acusatório sem nem se darem conta da dificuldade que é encontrar o que sirva.
Muitas vezes, as “roupas para todos os corpos”, conforme o enunciado das propagandas diz nos posts patrocinados que assolam a timeline – desde que você se atreve a clicar em um anúncio -, não contemplam o seu e te fazem se sentir a MAIOR aberração do universo, já que aquelas peças em tamanhos maiores ou para todes não chegam nem perto da promessa que garantem cumprir: a do empoderamento absoluto e sensual que o seu dinheiro pode comprar. E muitas vezes pode mesmo. Só não consegue, porque não serve.
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É violento, para dizer o mínimo, o que essas marcas fazem – a maior parte delas, diga-se de passagem. Ainda que saibamos aqui que confeccionar roupas grandes e para todes envolve estudo, pesquisa e molde, se apropriar desse discurso inclusivo para vender é perverso, haja vista que não conseguimos não só nos sentir bem nas peças escolhidas como, na maior parte das vezes, elas não cabem na gente.
Vira e mexe, influencers magras o suficiente para comprar roupas em lojas de departamento aparecem nos seus vídeos dando dicas de como vestir determinado modelo de biquíni de trás pra frente para que o mesmo cubra a ppk e deixe um fio-dental na bunda. Minha gente! Estamos falando de uma peça íntima. Se uma pessoa magra precisa criar um artifício para tal, imagina o que não passa um corpo grande e gordo? Mais do que isso, o que esse discurso provoca é a total responsabilização individual de um problema que é social. Ao privar mulheres gordas do consumo, sobretudo numa sociedade capitalista, estamos também sendo privadas da sociabilidade à qual estamos – ou deveríamos estar – inseridas.
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Além disso, toda nossa sexualidade e sensualidade se compromete diante da falta de oportunidades. Afinal, como vamos nos sentir sexy e desejáveis se não conseguimos, sequer, roupas íntimas que nos cubram as partes, quanto mais que instiguem uma abordagem mais erótica. Com a incapacidade do mercado da moda em atender todos os corpos conforme prometido, temos nossa vida sexual e afetiva subjugada: como vamos nos relacionar se sequer conseguimos nos vestir? E aí, dá-lhe criatividade, conhecimento, recursos financeiros e customização para dar conta das próprias fantasias: sejam elas para vestir ou serem realizadas.
Já a fantasia que o mundo parece não dar conta é a da mulher gorda que é capaz de existir, habitar o universo, vestir roupas íntimas sexy, fantasias, se sentir bem dentro do corpo que habita e de vestimentas que não apertem ou sufoquem. O que o universo parece não conseguir suportar é que mulheres gordas sejam sensuais, desejadas. E que desejem. Que queiram. Que tomem para si o próprio corpo e, ao invés de submetê-lo a dietas incontornáveis, o façam gozar livre e lindamente.
*Jéssica Balbino é jornalista, mestre em comunicação e acredita que pode transformar o mundo através das narrativas. É criadora e editora do Margens, projeto que difunde conteúdo sobre mulheres periféricas na escrita. Curadora de eventos literários em todo país. Podcaster, professora de cursos livres e autora dos livros “Hip-Hop – A Cultura Marginal”, “Traficando Conhecimento” e “gasolina & fósforo – meu corpo em chamas” (no prelo). Escreve sobre o corpo e literatura no Estado de Minas e Puta Peita. Estuda psicanálise.