Oficialmente, no Brasil ocorrem, em média, 8 estupros por dia, um a cada três horas. Mas a realidade é ainda pior. Esse número refere-se aos casos registrados, excluindo-se a cifra negra – crimes que não chegam ao conhecimento policial, ou que, após chegarem ao conhecimento das autoridades, são registrados, mas não culminam em uma ação penal e eventual condenação do acusado. Se contabilizarmos estes, a cifra pode chegar a uma mulher estuprada a cada 11 minutos no país. Mas o que está acontecendo se todos repudiam esse tipo de crime (até os próprios presos)? Por que essa barbárie continua?
Trata-se da tão falada cultura do estupro. Segundo a ONU Mulheres, este termo é usado para abordar as maneiras em que a sociedade culpa as vítimas e normaliza o comportamento sexual violento dos homens. As Nações Unidas afirmam ainda que ela é uma consequência da naturalização de atos e comportamentos machistas. Essa cultura paira no inconsciente – e muitas vezes no consciente – coletivo.
A sociedade civil ao mesmo tempo recrimina o crime e a vítima, além de propagar ideias machistas e naturalizar o poder do homem sobre a mulher.
Já não bastasse a cultura do estupro estar impregnada na sociedade civil, as instituições que deveriam prevenir os crimes de estupro, zelar pela integridade das vítimas e condenar os agressores sexuais não estão cumprindo seu papel. Muito pelo contrário. O que temos observado estarrecidos são casos nos quais os Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e o próprio Ministério Público agem ativamente ou passivamente para perpetuar e disseminar a abominável cultura de estupro.
A mais recente expressão deste defeito de nosso país ocorreu na última semana. O promotor de justiça Alexandre Couto Joppert, durante a última etapa do concurso do Ministério Público, narrou uma situação hipotética de estupro coletivo e comentou que a “melhor parte” é a conjunção carnal, “dependendo da vítima”.
Não bastasse essa infeliz afirmação, o promotor sentiu-se à vontade também para dizer que, se um estuprador “ejacula cinco vezes, é um herói”. Os comentários foram gravados e amplamente divulgados, causando perplexidade e revolta em mulheres no país inteiro. Após as declarações, o Procurador Geral do Ministério Público de São Paulo autorizou a abertura de procedimento administrativo para investigar a conduta do promotor durante a prova oral do concurso. De acordo com a nota divulgada pelo Ministério Público, caracterizada infração de outra natureza, novas providências poderão ser tomadas.
Na Zona Leste de São Paulo, Maria*, menor de idade, diante de uma agente policial de uma Delegacia de Defesa da Mulher, tentou relatar a tentativa de estupro que sofrera dentro de um ônibus. Na sala ao lado, com a porta aberta, o seu agressor observava e intimidava a vítima durante todo o seu depoimento. O constrangimento e o atendimento grosseiro recebido na delegacia fizeram com que a vítima assinasse o boletim de ocorrência mesmo após verificar que ele continha informações equivocadas. O relato de Maria* consta em uma série de reclamações encaminhadas à Ouvidoria da Polícia Civil de São Paulo em 2015 que apontam a falta de amparo das Delegacias de Defesa da Mulher à mulher que sofre algum tipo de violência. Entre os relatos constam ainda a dificuldade em registrar uma ocorrência, o descrédito da versão da vítima e a lentidão das investigações.
No âmbito Legislativo, o Brasil assistiu perplexo o deputado Jair Bolsonaro em uma sessão da Câmara dos Deputados, ao debater com a deputada Maria do Rosário, fazer a seguinte declaração: “Há poucos dias, tu me chamou de estuprador, no Salão Verde, e eu falei que não ia estuprar você porque você não merece”. No dia seguinte, o deputado repetiu a frase em uma entrevista que concedeu ao jornal Zero Hora e completou, explicando que a deputada não merecia ser estuprada porque é feia. Pelos fatos, o deputado vai responder a uma ação por dois crimes no Supremo Tribunal Federal: por incitação ao estupro e também por injúria contra a deputada. Percebam a gravidade: um representante eleito democraticamente pelo povo brasileiro para legislar, incita publicamente o estupro e, pior, trata o estupro como um prêmio para as mulheres bonitas que dele seriam merecedoras.
Indignados com essa declaração? Ela é apenas o pico do iceberg que todos nós tivemos conhecimento. E os casos que ocorrem todos os dias e tramitam em segredo de justiça? Em um caso emblemático, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a absolvição do réu que estuprou diversas vezes sua enteada, menor de 14 anos, sob o argumento de que houve o consentimento da vítima, ignorando flagrantemente que nesses casos a violência é presumida (irrelevante o suposto consentimento). A vítima foi vergonhosamente etiquetada pela juíza como uma adolescente “desvencilhada de pré-conceitos e preconceitos”, muito segura e informada sobre os assuntos da sexualidade, pois “sabia o que fazia”. Julgou-se que a vítima “não se trata de pessoa ingênua”.
Ora, a tarefa da juíza de direito criminal é a de julgar o fato atribuído ao réu, mas neste caso julgou a própria vítima e sua personalidade. Quando, em recurso, o caso foi julgado por um colegiado de magistrados mais experientes, o TJSP manteve a absolvição do réu por considerar que o vínculo afetivo que a vítima nutria por seu padrasto é “condição para o afastamento da aludida violência presumida”, uma vez que – nas palavras do Desembargador-Relator – “tal afeto deve imperar neste afastamento por ser legítimo e, até, moral.” Apenas quando o caso chegou a Recurso Especial no Superior Tribunal de Justiça o réu foi condenado por estupro de vulnerável.
O menosprezo à figura da mulher e a cultura do estupro estão alastrados em todos os lugares, na linguagem, na publicidade, nas redes sociais, nos lares, nas ruas, nas revistas, na TV, nos filmes, etc. Não há o que se questionar quanto a isso. Combater essa chaga social é nosso dever. Agora admitir que nossos representantes nas esferas de todos os poderes – eleitos ou aprovados por concurso público – perpetuem essa cultura é INACEITÁVEL.
A punição, seja administrativa, penal e cível, deve ser imediata e exemplar, com a finalidade de coibir veemente condutas semelhantes. A liberdade de expressão e opinião é um direito constitucional, desde que não atinja o direito alheio. A perpetuação da cultura do estupro, principalmente por representantes da sociedade, atinge todos nós. Eles estão desrespeitando todos nós. Isso é inadmissível, imoral, ilegal e inconstitucional. Até quando vamos nos calar e tolerar essa violência coletiva explícita?