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16 de dezembro de 2015

O Estado abusa dos corpos de mulheres e filhos de presos

Revista vexatória vitimiza pessoas do sexo feminino em 82% dos casos, sem contar crianças e idosos. Além de ineficaz, prática fere direitos constitucionais

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Em pleno Século 21, no Brasil, cerca de meio milhão de mulheres, homens e crianças são abusados pelo Estado. Essas pessoas – em sua imensa maioria do sexo feminino – são obrigadas a se despir perante estranhos, ter seus corpos inspecionados por agentes penitenciários, agachar-se diante de espelhos para provar que não tem nenhum objeto no ânus ou na vagina – tudo isso para ter o direito de visitar seus familiares presos. Às vezes, quem passa por isso são idosas ou meninas ainda virgens. Nem mesmo os bebês são poupados e precisam ser despidos e revistados.

Esse procedimento é chamado revista pessoal, porém, o nome mais adequado é revista vexatória, por ser uma revista vergonhosa e humilhante. Pelo simples fato de possuir vínculos afetivos com pessoas privadas de liberdade e desejar manter esse vínculo, essas pessoas têm seus direitos ignorados. Na medida em que ocorre a revista vexatória, diversos preceitos constitucionais dos visitantes são violados, como o direito à dignidade humana, o direito à intimidade, a pessoalidade da aplicação da pena (ou seja, a pena não deve ser estendida aos parentes dos condenados) e o direito a não ser submetido a tratamentos degradantes.

Além de degradante e violadora de direitos fundamentais, a revista vexatória é desnecessária. Um levantamento realizado pela Rede Justiça Criminal em 2014 com base nos dados oficiais fornecidos pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo demonstra que somente 3 a cada 10 mil visitantes portava drogas ou celulares.

Diante do resultado irrisório da apreensão de objetos proibidos – que não justifica a reiterada violação de direitos humanos –, a revista vexatória foi proibida por lei em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outras unidades federativas. Porém, ainda não há um diploma normativo que vede a revista vexatória em todo o território nacional.

Não há dúvida de que a segurança dos estabelecimentos prisionais não pode ser negligenciada e a entrada de objetos ilícitos ou proibidos deve ser barrada. Mas existem maneiras muito mais dignas – e eficazes – de fazê-lo, como a utilização dos scanners corporais, já populares nos aeroportos mundo afora.

Todos que queiram ter acesso aos estabelecimentos penais também podem (e devem) passar por aparelhos detectores de metais, independentemente de cargo ou função pública. Excepcionalmente, pode haver ainda uma revista manual respeitosa, executada por agente de mesmo gênero.

Se é ineficiente e desnecessária por que, então, a revista vexatória continua sendo praticada? A resposta é simples: o custo financeiro para adquirir e manter scanners corporais é muito alto. Os aparelhos mais eficientes para detectar objetos escondidos no corpo são caros e as unidades prisionais que possuem essa tecnologia geralmente possuem um ou dois aparelhos. O número de visitantes é desproporcional ao número de scanners, ou seja, a maioria será submetida à revista vexatória.

E assim esse abuso continua. A humilhação é tolerada e considerada até certo ponto “normal”. Quem passa por isso “decidiu ir ao presídio por vontade própria”, não é mesmo? Argumento raso de quem já está acostumado a tantas barbaridades nesse nosso Brasil. Além disso, “gente que vai visitar preso tem grande chance de não ser boa pessoa”. Mais um argumento raso e desumano.

Sabemos que a família tem papel fundamental para o processo de reinserção social da pessoa presa e a visitação de familiares é o alicerce para que muitas pessoas suportem as agruras do cárcere e se empenhem na busca de um novo começo de vida longe da criminalidade. Por outro lado, a revista vexatória, além de violar inúmeros direitos das mulheres, homens e crianças que entram nas unidades prisionais, certamente inibe a visitação de amigos e familiares que não querem se despir e agachar em cima de um espelho para provar que não escondem objetos em suas cavidades naturais.

Não tenho vínculo afetivo com nenhuma pessoa presa mas, se tivesse, eu não permitiria que qualquer pessoa desconhecida inspecionasse o meu corpo nu. Meu corpo me pertence e não vou colocá-lo despido em nenhuma vitrine para o exercício de qualquer direito. Eu tenho direito de não ter minha intimidade e meu corpo violados.

A Resolução nº 05, de 28 de agosto de 2014, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (órgão do Ministério da Justiça) recomenda a não utilização de práticas vexatórias para o controle de ingresso aos locais de privação de liberdade, como desnudamento parcial ou total; introdução de objetos nas cavidades corporais da pessoa revistada; uso de cães ou animais farejadores, ainda que treinados para esse fim; agachamento ou saltos. No entanto, a resolução é apenas uma recomendação. As unidades prisionais não tem a obrigação de cumpri-la até que a prática seja proibida por uma lei estadual ou federal.

Há dois projetos de lei tramitando no Congresso (o PL 7.764/2014 e o PL 404/2015) que visam a proibição da revista vexatória. Infelizmente, no Brasil, uma lei desse tipo ainda está longe de ser aprovada. Aqui reina o pensamento do “bandido bom é bandido morto” e muitos não querem ver um centavo investido na melhora de penitenciárias. Mas será que podemos continuar dormindo à noite sabendo que estamos condenando a uma pena de abuso sexual familiares que sequer cometeram crimes?

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* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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