O Divã de hoje é anônimo.
“Há 10 anos, eu estava em um dos últimos bancos traseiros da linha Barra Funda/Vila Penteado voltando da faculdade. Era o meu primeiro ano da graduação de jornalismo e, como minhas aulas começavam às 7h, eu acordava bem cedo e pegava transporte público.
Naquele dia, como em vários outros, estava cansada, depois de quatro horas de aulas. Era hora do almoço e, portanto, o ônibus estava vazio, o que me permitiu escolher um assento próximo à janela para repousar a cabeça e descansar. Peguei no sono em poucos minutos.
Não sei quanto tempo permaneci assim; acordei por que senti que havia algo de errado. Quando abri os olhos, notei um rapaz sentado ao meu lado — o que era estranho, já que ele poderia ter escolhido qualquer assento. E ele estava tão próximo de mim que suas coxas, tronco e braços tocavam meu corpo. Não olhei, mas eu sentia que ele me encarava.
Alguma coisa atraiu meu olhar para baixo, e vi algo que moldaria as minhas atitudes de hoje.
O rapaz estava com seu pênis parcialmente fora da calça de moletom preta que vestia, e, com a mão que não estava encostada em meu corpo, ele se masturbava.
Sempre tentei antever o que fazer em uma situação vulnerável de assédio. Nesses pensamentos, eu confronto o abusador, algumas vezes até consigo bater nele, daí faço um escândalo daqueles, e outras pessoas surgem para me ajudar e conter meu algoz. Na minha cabeça, de uma forma ou outra, a Justiça acontece.
Mas eu não fiz nada disso. Minha primeira reação – e me odiei por isso por um tempo – foi fechar os olhos novamente e fingir que ainda dormia. Hoje entendo que aquela deva ter sido uma reação do meu inconsciente querendo negar o que estava acontecendo.
Em um sobressalto, decidi fugir do meu agressor. Abri os olhos novamente, me levantei e passei por ele – que ainda tocava o próprio pênis – para me sentar em outro lugar do ônibus. Fiz tudo isso calada.
Eu tremia de nervoso. Não sei quanto tempo passou – pareceu uma eternidade, mas notei alguns poucos passageiros de costas para mim. Ninguém viu o que aconteceu. Demorei um tempo fitando o cobrador, mas ele não retribuiu meu olhar.
O rosto do cobrador, aliás, é o único que ainda lembro daquele dia. Não sei qual é a aparência do meu agressor por que em momento algum eu tive coragem de encará-lo.
De qualquer maneira, não faria diferença. Ele não tem cara de agressor – nenhum deles tem. O agressor não usa uma faixa preta nos olhos, surge de becos mal iluminados e ataca a vítima enquanto dá uma risada maléfica. Não, ele é um passageiro no ônibus, um motorista de táxi ou de aplicativo, um colega seu da faculdade, um amigo da família e, às vezes, até um próprio familiar.
Quando o ponto no qual normalmente desço passou, não me levantei. Preferi descer no seguinte, com medo de que o abusador deduzisse onde eu moro. Apertei o sinal e sai rápido do ônibus. Mas aquela memória permaneceu comigo tanto quanto a impunidade ficou com o meu agressor.
Hoje eu penso, será que ele agiu de novo? Quantas vezes? Quantas outras se calaram? Quantas outras, assim como eu, são obrigadas a conviver em silêncio com essa lembrança?
São pouquíssimas as pessoas que sabem o que aconteceu comigo 10 anos atrás. Às vezes penso que vão me julgar.
“Por que você não gritou? Por que não o confrontou? Por que não fez nada?”, “Ah, mas ele nem encostou o pau dele em você. Podia ter sido pior. Já pensou se ele tentasse te estuprar ‘de verdade’?” – perguntas que faço a mim até hoje.
Após 10 anos, eu já não lembro dessa história todos os dias, mas ela me marcou como trauma – porque é nisso em que se transformam as memórias ruins. A experiência está lá quando tenho sono no ônibus e não consigo dormir; quando senta um homem do meu lado e fico desconfortável; quando o homem sentado ao meu lado mexe no bolso da calça, e meu coração bate rápido e descompassado.
Lembro do ocorrido em semanas como a que passou, na qual duas mulheres foram assediadas dentro do transporte público de São Paulo; sendo que uma delas recebeu a ejaculação de seu agressor no pescoço. As duas vítimas tiveram a coragem que eu não tive de gritar por ajuda. Conseguiram ver seus algozes algemados, colocados no camburão de uma viatura de polícia, levados para uma delegacia.
Não quero nem pensar no que elas sentiram logo depois, quando viram os mesmos agressores serem soltos. Arrisco dizer que a sensação pode ter sido próxima a de um novo abuso, mas só elas sabem desse peso. O resultado de tudo isso foi um novo episódio de abuso em transporte público — e dessa vez o abusador ficou preso.
O juiz que analisou o caso do homem que ejaculou na passageira o absolveu alegando que não houve constrangimento no ato. Gostaria de saber o que na opinião do magistrado é constrangimento.
Na tentativa de encontrar diferenças entre meu agressor e o juiz, encontrei uma semelhança: ambos estimam a impunidade. Impunidade que encoraja algozes como o meu e fazem vítimas se calarem como eu. Essa impunidade não vai me calar agora. Demorei 10 anos, mas decidi – finalmente – gritar.”
* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
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