Ser mulher em um país com altos índices de violência misógina como o Brasil não é fácil, e, no caso das mulheres indígenas, existem experiências específicas a serem levadas em conta. Se hoje possuímos ferramentas importantes como a Lei Maria da Penha, ainda há meios que precisam ser fortalecidos. Essa mesma lei pode não ser acessada por mulheres originárias, deixando-as desprotegidas frente à violência doméstica. Há questões pouco consideradas pela sociedade não indígena, como as línguas; o acesso de autoridades a Terras Indígenas demarcadas; o direito de autodeterminação dos povos em relação às punições.
Por bastante tempo, um dispositivo legal do qual o Brasil é signatário, a Convenção da Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra Mulheres – adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas –, não incluía questões sobre mulheres e meninas indígenas. Só em 2022, após 41 em vigor, a menção a essa população aconteceu nas recomendações gerais.
O avanço foi fruto da articulação intercontinental de mulheres originárias, e continua sendo levado a frente por movimentos da América, Ásia, África, Europa e Oceania, uma vez que colocar a Convenção em prática possui outros obstáculos.
Um dos exemplos desse vínculo aconteceu ainda neste ano (2023), durante a III Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília, em setembro. Mulheres envolvidas na garantia de acesso de direitos estiveram presentes, expondo pontos em comum, progressos e barreiras em seus contextos locais e mundiais.
Gênero e etnia
Para falar de mulheres indígenas e seus direitos, não podemos abandonar o olhar interseccional. Só assim não caímos no erro de desrespeitar o fato de que há povos com particularidades na sua maneira de se autodeterminar.
Ao mesmo tempo, há situações que podem vulnerabilizar mulheres e meninas. Jannie Lasimbang, parlamentar indígena da Malásia, durante sua passagem pelo Brasil na Marcha, expôs a insatisfação de movimentos de mulheres indígenas com casamentos infantis, que são questionados junto aos homens indígenas.
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Outras situações foram exemplificadas durante o evento, como assédios psicológicos e violências físicas – esse último inclusive decorrente de problemas do consumo excessivo de álcool em contextos indígenas.
A troca entre os movimentos de mulheres as instrumentaliza para dialogar internamente com o seu povo. Afinal, as práticas não são estanques, as transformações partem de movimentações internas, não de imposições externas.
Saberes desrespeitados
Perante a sociedade não-indígena, as mulheres indígenas enfrentam outros dilemas. No âmbito dos direitos reprodutivos e sexuais, a luta delas é para que suas práticas milenares de saúde sejam reconhecidas junto à ciência convencional, especialmente nos momentos de maternidade.
Muitas vezes, as mulheres indígenas têm seus saberes desrespeitados e com frequência são constrangidas por profissionais de saúde despreparados. Entre os relatos que ouvimos na marcha, não é incomum também que sejam humilhadas por estarem grávidas, ou que sofram na hora de fazer algo simples, como abrir uma conta no banco.
Cartilhas e ações para avançar
A Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA) desenvolveu uma cartilha para que mulheres indígenas conheçam seus direitos básicos e construam estratégias de enfrentamento às violências. O documento foi criado a partir de encontros de mulheres em diferentes territórios indígenas e aborda os diferentes tipos de violência que elas podem sofrer (incluindo patrimonial, política, virtual, racial, institucional, religiosa), além de instruções sobre como buscar ajuda e exemplos dos desafios enfrentados.
Segundo Jannie Lasimbang, os movimentos de mulheres indígenas na Malásia também desenvolvem ações de educação de anciãos e crianças, bem como conscientização nas escolas e nas mídias sociais sobre o fim do casamento infantil.
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Na Finlândia, as mulheres indígenas do povo Sámi reivindicam acesso à saúde e serviços sociais específicos na língua deles, conforme relatou a parlamentar desse povo, Pirita Näkkäläjärvi, que também esteve no Brasil. A demanda inclui também saúde mental, uma vez que as mudanças climáticas e as disputas por território possuem grande impacto nos povos indígenas nesse aspecto.
O diálogo e as costuras internacionais evidenciam que muitos problemas se repetem, independentemente das fronteiras e biomas. Mas com trabalho coletivo seguimos todas inspiradas, fortalecidas e mais experientes.