Esse é o primeiro texto que escrevo para AzMina. Antes de iniciá-lo, gostaria de me apresentar. Sou Ana Flor Fernandes e a mais nova colunista da revista. Travesti, negra e nordestina. Mestranda em educação na Universidade de São Paulo e pedagoga pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Escrevo sobre gênero, sexualidade, política, educação e movimentos sociais. Não posso esquecer: adoro poemas e jogo xadrez.
Feita essa rápida, e ainda tímida, apresentação, é no mínimo curioso um título que nos tensiona a pensar sobre algo. Toda pergunta nos permite algumas inquietações, não seria diferente quando estamos falando de Brasil e travestis na mesma frase. Do futebol à televisão, da mesa do almoço à sala de aula, sempre há a elaboração de um lugar-comum: o controle. Controle no sentido de dizer quais os locais as travestis podem – ou não – e devem – ou não – estar.
Não existe uma didática ou um currículo que nos mostre quais os métodos e práticas para construir diálogos com travestis e mulheres trans, e nem deveria. Mas, enquanto sociedade, se tem algo que somos comumente educados e educadas a fazer, é tratar com violência travestis e pessoas trans. Aprende-se, de maneiras diversas, a desrespeitar essas identidades e sujeitos.
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Violências diversas
Desde violências verbais, quando não respeitam pronomes e o nome escolhido pelas pessoas trans e travestis, até a violência simbólica quando colocam essa população em um lugar estático de marginalização. Por incrível que pareça, é mais fácil corrigir o nome errado de um cachorro ou uma cadela, no meio da rua, do que de uma travesti. É uma comparação absurda? Sim. Para que possamos visualizar o nível de uma não-ética.
Existe no Brasil um olhar ‘generificado’ e muito específico no que diz respeito ao processo de construção da identidade travesti. Quem tem medo de travesti? Podemos confessar que não é tão difícil responder a essa pergunta.
Dados recentes do estudo Violência LGBTfóbia na Cidade de São Paulo: limites ao direito à cidade da população LGBTQIAPN+, realizado pelo Instituto Pólis, apontam que o número de registros por homofobia e transfobia cresceu mais de 15 vezes em 7 anos. Em 2015, foram 63 boletins de ocorrência. Já em 2022, 963 registros. Isso configura um aumento de 1.424%. Nos últimos 9 anos, a violência passou pela vida de 3.968 pessoas LGBTs.
Um outro levantamento do Observatório Mortes e Violências LGBTI Brasil, denunciou que, durante o ano de 2023, ocorreram 230 mortes de pessoas LGBTs de forma violenta no país. A pesquisa foi feita pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) juntamente com a Acontece Arte e Política LGBTI+ e a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT).
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Imaginar outros Brasis
A maneira com a qual aprendemos a violentar determinados grupos está ligada às relações culturais, políticas, religiosas, sociais, e de como essas associações são produzidas e perpetuadas. No caso do nosso país, somos ensinados e ensinadas que travestis são perigosas. Logo, precisamos mantê-las em lugares distantes da nossa casa, família, escola – sendo que esses círculos sociais são fundamentais para o nosso desenvolvimento.
Se reunirmos nossas famílias, amigos, colegas de trabalho e até pessoas que vimos apenas uma vez, onde estarão as travestis na nossa vida? A ausência representa um reflexo da nossa concepção, diz muito sobre quem somos e como nos constituímos. Afinal, qual o nosso papel enquanto sujeito a partir do momento que adquirimos um letramento, ainda que mínimo, das questões de gênero e sexualidade?
Romper com esse imaginário tem sido um trabalho estruturado pelas próprias travestis. Organizadas em movimentos sociais ou não, quando pensamos em travestis professoras, dentro ou fora das salas de aulas, estamos respondendo que a cristalização de uma imagem ruim – da travesti marginalizada – não seguirá. Esse imaginário, portanto, pode representar um projeto de vida – ou morte – a depender de quem olha.
Quando adentramos o cenário político e nos tornamos propositoras de projetos de lei, estamos evidenciando que existe uma disputa pela narrativa que foi, durante anos, projetada sobre travestis e pessoas trans. Enquanto o Brasil pulveriza o ódio contra travestis, nós nos movemos em busca de outros Brasis.