Hoje a coluna é uma resposta da literatura ao fascismo. Por isso convidei mais três autoras que escrevem contra o fascismo a produzirem textos inéditos. Precisamos da literatura neste momento. Fiquem com elas – ou melhor, vamos juntas:
“Nós sim, fascismo não
eu quero apenas ser livre para decidir sobre meu corpo.
ele não.
não que ele não queira ser livre. ao contrário. ele quer que a liberdade dele se sobreponha à minha. me atropele. me derrube. tirar minha liberdade pode, a d’
ele não.
não é que ele seja a favor do estupro. mas ele acha que eu mereço ser estuprada.
ele não.
aliás, ele acha que todas nós merecemos ser estupradas. a Ana, a Bia, a Maria, a Amélia, a Laura, a Jacira, a Rosa, a Tainá, a Jéssica, a Miriam, a Helena, a Heleninha.
ele não.
sabe, não peço muito. nada além do razoável. só quero viver num país em que a cor da pele não determine as oportunidades que temos.
ele não.
estou aqui me esforçando para defender só o mínimo mesmo. o básico. direitos fundamentais. como ter minha opção sexual e de gênero respeitadas, sejam elas quais forem. olha, nem questiono a opção dele. acho que a opção de cada um não interfere em nada na dos outros.
ele não.
amigues, estamos trabalhando com o básico aqui, o simples mesmo, nada de sofisticado. como viver num país cujo governo busque diminuir a desigualdade social em vez de aumentá-la.
ele não.
e todo dia, enquanto vou pro trabalho, lavo louça, tomo banho, vejo memes absurdos na internet, espero na fila do pão, só consigo pensar:
ele não.
ele esquece que estamos no século XXI e que nós, mulheres, negras, negros, indígenas, quilombolas, marginalizados, periféricos, votamos – goste ele ou não. conquistamos nosso direito ao voto e votamos. mas n’
ele não.
e, apesar dele, não me sai da cabeça e do peito a esperança por um país mais igualitário, inclusivo, libertário, positivo. um país que diga sim a mim, a todas, a todos, a todes. enquanto ele só nos diz não. e entre ele e nós, eu escolho a nós.
nós sim.
ele não.
ele não,
porque ele é o não.
a língua portuguesa é muito clara quanto a suas regras semânticas e gramaticais, mas, às vezes, é paradoxal. porque, para dizer sim a nós, é preciso dizer não a ele.
ele não.
e como a voz da negatividade ecoa muito alto e ameaça sufocar as nossas, precisamos dizer sim a nós e não a ele de todas as formas possíveis. é preciso juntar todas as nossas vozes e gritar:
ele não!
Bruna Escaleira é jornalista e escritora paulistana, pesquisa literaturas e feminismos.
“eles andam armados
cinco minutos
sem respirar é tempo demais
meu amor todos os dias
anota uma por uma suas tarefas
a semana é sempre cheia
“logo logo melhora” promete
me ilude
e nada como um dia após
olha que irônico, este poema
escrevi em células
de um excel era o que tinha à mão
difícil voltar atrás
experimente observar
uma pessoa correndo
do ponto a ao ponto b
muito longe
também pode ser um carro
conversível cortando vales
você vê o começo exato
e o fim
mas não sente o vento no rosto
lenta velocidade
você interpreta a urgência
no seu próprio cronômetro
um processo histórico dura anos
nós o futuro saltamos
os anos
a título de exemplo:
do primeiro militar
ao quinto ato institucional
foram quatro anos de vida intensa
sarjetas, varais, cronogramas
paixões pelos becos
imagine não viver por alguns anos
isso não existe
observar o tempo, observar
o tempo
estar dentro dele
irônico, agora percebi
meu excel tem um nome
se chama controle
tudo ainda dentro dos prazos
não sei terminar esta nota ando inquieta
quero olhar o mundo saber vê-lo inteiro
e quando houver tiros na vigília
de uma prisão política
– a direita é uma avalanche
em câmera lenta
(é só o começo) –
saber aprontar a matula
estar onde se deve estar
este exercício
é só o começo”
Helena Zelic, 1995, vive em São Paulo, é poeta, comunicadora e militante feminista.
“Distopia
Ontem,
Vi um daqueles dos quais falam tanto.
– Olha ele, ele é, ele sim
– Não, ele não, ele não é possível que ele seja.
Ao que me responderam que ele era.
E quanto mais eu caminhava mais os via.
E mais pensava.
Mas não pode ser, não ele, ele não.
Mas ele era.
Eu fechava os olhos eu inventava desculpas.
Mas ele não, não ele, mas não pode ser.
Quando o vi comer com a boca um pouco aberta, eu pensei:
Mas não, ele não pode ser.
Mas ele era.
Quando o vi tentar segurar um arroto depois de tomar um copo de cerveja rápido demais, eu pensei:
Mas não, ele não pode ser.
Mas ele era.
Quando o vi cantar aos berros uma música que tocava no trânsito pensando que ninguém estava ouvindo, eu pensei:
Mas não, ele não.
Quando o vi fazer uma careta ao se dar conta que a conta do bar era mais cara que ele tinha imaginado, eu pensei:
Mas não, ele não pode ser.
Mas ele era.
Quando o ouvi perguntar assustado se podia ficar já que o último metrô já tinha ido, eu pensei:
Mas não, ele não pode ser.
Mas ele era.
E quando ele se pôs tão eloquente sobre um mundo utópico de fardas e ódio.
E quando ele me calou.
E quando ele esbravejou.
Eu vi que ele era.
E quando ele se pôs a dormir com a boca aberta agarrado ao meu travesseiro de alfazema, que eu tinha comprado porque eu não podia mais dormir, porque eu não podia mais pregar os olhos, porque eu tinha que lidar com demônios surdos, barulhentos e disciplinados, cujos passos fizeram quebrar o cristal da moringa que eu ganhei da minha vó e eu não via saída, eu não tinha pra onde fugir.
Eu tive certeza que ele era.
Quando os seus pés se debatiam e lhe faltava o ar sob meu travesseiro e seu suor acentuava o odor de lavanda e camomila.
Eu acordei.
Hoje eu acordei
E tomei meu café sozinha.
Ao abrir a porta vi que ele não era só um sonho ruim.
Que eles eram ainda muitos, que eles eram milhões.
Hoje,
Vi uma daquelas das quais falam tanto.
E ela me deu a mão.
Ela segurou na minha mão que tremia com a sua que suava frio.
E éramos milhões de mãos e milhões de vozes.
E já não tínhamos medo.”
Mariana Brecht
Entre a diplomacia e a cultura, entre a Europa e a América Latina, Mariana transita entre mundos opostos e tudo faz com muitas ganas. Escreve quando não produz. Produz quando não planta. Planta quando não traduz. Traduz quando não dança. Com raízes cravadas em solo de terra roxa e idéias regadas por todas as chuvas do mundo, segue. Sua única constante é a mudança.
“do que sei sobre antifa
na minha terra dizem que fascista não ganha
porque a gente sabe com exatidão onde
dói o abismo são linhas de conhecimento
muito duras e tantos anos entre água
e seca absoluta nos ensinaram a valorizar
a força de um não diante da ameaça mais
perigosa e medonha possível
diante do horror um pé vai na água
e o outro no inferno a gente se sustenta no
balanço dos que conseguem pisar ligeiro
no mangue mesmo quando tudo indica
que afundar é a próxima cena na sequência
dos dias desta primavera
aqui também me contam que o desejo é tão
forte como a nossa imagem no espelho
um corpo para o qual o tempo passa depressa
e o outro onde ainda se encontram novas marcas
desníveis fora do susto da recordação
você me pergunta sobre os três pontos e eu respondo
não faço a menor ideia de como eles surgiram
porque sinto que a minha memória apaga
todas as formas de voltar para casa
todas as formas de arranhar com carinho
não importa se faz muito calor ao meio-dia na rua
do hospício ou se você me diz que podemos dar
um intervalo no tempo da madrugada aberta
quando eu defendo o meu corpo também defendo
o meu território e aqui sem nenhum amparo
sozinha mesmo que você repita não durma
eu entendo de maneira transversa
porque a minha terra sempre será a palavra de ordem
contra tantas forem as chances de invasão”
Priscilla Campos nasceu em Recife. Escreve e pesquisa. Mestra em Teoria da Literatura, jornalista, crítica literária e poeta; estuda literatura hispano-americana e as relações entre corpo, linguagem e espaço.
Ah! Só para não esquecer: #EleNão
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