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10 de outubro de 2018

Um pouco de literatura contra o fascismo

Convidei mais três autoras que escrevem contra o fascismo a produzirem textos inéditos, porque precisamos de literatura neste momento

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Arte de Bruna Escaleira

Hoje a coluna é uma resposta da literatura ao fascismo. Por isso convidei mais três autoras que escrevem contra o fascismo a produzirem textos inéditos. Precisamos da literatura neste momento. Fiquem com elas – ou melhor, vamos juntas:

 

“Nós sim, fascismo não

eu quero apenas ser livre para decidir sobre meu corpo.

ele não.

 

não que ele não queira ser livre. ao contrário. ele quer que a liberdade dele se sobreponha à minha. me atropele. me derrube. tirar minha liberdade pode, a d’

ele não.

 

não é que ele seja a favor do estupro. mas ele acha que eu mereço ser estuprada.

ele não.

 

aliás, ele acha que todas nós merecemos ser estupradas. a Ana, a Bia, a Maria, a Amélia, a Laura, a Jacira, a Rosa, a Tainá, a Jéssica, a Miriam, a Helena, a Heleninha.

ele não.

 

sabe, não peço muito. nada além do razoável. só quero viver num país em que a cor da pele não determine as oportunidades que temos.

ele não.

 

estou aqui me esforçando para defender só o mínimo mesmo. o básico. direitos fundamentais. como ter minha opção sexual e de gênero respeitadas, sejam elas quais forem. olha, nem questiono a opção dele. acho que a opção de cada um não interfere em nada na dos outros.

ele não.

 

amigues, estamos trabalhando com o básico aqui, o simples mesmo, nada de sofisticado. como viver num país cujo governo busque diminuir a desigualdade social em vez de aumentá-la.

ele não.

 

e todo dia, enquanto vou pro trabalho, lavo louça, tomo banho, vejo memes absurdos na internet, espero na fila do pão, só consigo pensar:

ele não.

 

ele esquece que estamos no século XXI e que nós, mulheres, negras, negros, indígenas, quilombolas, marginalizados, periféricos, votamos – goste ele ou não. conquistamos nosso direito ao voto e votamos. mas n’

ele não.

 

e, apesar dele, não me sai da cabeça e do peito a esperança por um país mais igualitário, inclusivo, libertário, positivo. um país que diga sim a mim, a todas, a todos, a todes. enquanto ele só nos diz não. e entre ele e nós, eu escolho a nós.

nós sim.

ele não.

 

ele não,

porque ele é o não.

 

a língua portuguesa é muito clara quanto a suas regras semânticas e gramaticais, mas, às vezes, é paradoxal. porque, para dizer sim a nós, é preciso dizer não a ele.

ele não.

 

e como a voz da negatividade ecoa muito alto e ameaça sufocar as nossas, precisamos dizer sim a nós e não a ele de todas as formas possíveis. é preciso juntar todas as nossas vozes e gritar:

ele não!

Bruna Escaleira é jornalista e escritora paulistana, pesquisa literaturas e feminismos.

 

eles andam armados

 

cinco minutos

sem respirar é tempo demais

meu amor todos os dias

anota uma por uma suas tarefas

a semana é sempre cheia

“logo logo melhora” promete

me ilude

 

e nada como um dia após

olha que irônico, este poema

escrevi em células

de um excel era o que tinha à mão

difícil voltar atrás

 

experimente observar

uma pessoa correndo

do ponto a ao ponto b

muito longe

também pode ser um carro

conversível cortando vales

 

você vê o começo exato

e o fim

mas não sente o vento no rosto

lenta velocidade

você interpreta a urgência

no seu próprio cronômetro

 

um processo histórico dura anos

nós o futuro saltamos

os anos

 

a título de exemplo:

do primeiro militar

ao quinto ato institucional

foram quatro anos de vida intensa

sarjetas, varais, cronogramas

paixões pelos becos

imagine não viver por alguns anos

isso não existe

observar o tempo, observar

o tempo

estar dentro dele

 

irônico, agora percebi

meu excel tem um nome

se chama controle

tudo ainda dentro dos prazos

 

não sei terminar esta nota ando inquieta

quero olhar o mundo saber vê-lo inteiro

e quando houver tiros na vigília

de uma prisão política

– a direita é uma avalanche

em câmera lenta

(é só o começo) –

saber aprontar a matula

estar onde se deve estar

este exercício

é só o começo”

Helena Zelic, 1995, vive em São Paulo, é poeta, comunicadora e militante feminista.

 

 

Distopia

Ontem,

Vi um daqueles dos quais falam tanto.

– Olha ele, ele é, ele sim

– Não, ele não, ele não é possível que ele seja.

Ao que me responderam que ele era.

 

E quanto mais eu caminhava mais os via.

E mais pensava.

Mas não pode ser, não ele, ele não.

Mas ele era.

Eu fechava os olhos eu inventava desculpas.

Mas ele não, não ele, mas não pode ser.

 

Quando o vi comer com a boca um pouco aberta, eu pensei:

Mas não, ele não pode ser.

Mas ele era.

 

Quando o vi tentar segurar um arroto depois de tomar um copo de cerveja rápido demais, eu pensei:

Mas não, ele não pode ser.

Mas ele era.

 

Quando o vi cantar aos berros uma música que tocava no trânsito pensando que ninguém estava ouvindo, eu pensei:

Mas não, ele não.

 

Quando o vi fazer uma careta ao se dar conta que a conta do bar era mais cara que ele tinha imaginado, eu pensei:

Mas não, ele não pode ser.

Mas ele era.

 

Quando o ouvi perguntar assustado se podia ficar já que o último metrô já tinha ido, eu pensei:

Mas não, ele não pode ser.

Mas ele era.

 

E quando ele se pôs tão eloquente sobre um mundo utópico de fardas e ódio.

E quando ele me calou.

E quando ele esbravejou.

Eu vi que ele era.

 

E quando ele se pôs a dormir com a boca aberta agarrado ao meu travesseiro de alfazema, que eu tinha comprado porque eu não podia mais dormir, porque eu não podia mais pregar os olhos, porque eu tinha que lidar com demônios surdos, barulhentos e disciplinados, cujos passos fizeram quebrar o cristal da moringa que eu ganhei da minha vó e eu não via saída, eu não tinha pra onde fugir.

Eu tive certeza que ele era.

 

Quando os seus pés se debatiam e lhe faltava o ar sob meu travesseiro e seu suor acentuava o odor de lavanda e camomila.

Eu acordei.

 

Hoje eu acordei

E tomei meu café sozinha.

Ao abrir a porta vi que ele não era só um sonho ruim.

Que eles eram ainda muitos, que eles eram milhões.

 

Hoje,

Vi uma daquelas das quais falam tanto.

E ela me deu a mão.

Ela segurou na minha mão que tremia com a sua que suava frio.

 

E éramos milhões de mãos e milhões de vozes.

E já não tínhamos medo.”

Mariana Brecht

Entre a diplomacia e a cultura, entre a Europa e a América Latina, Mariana transita entre mundos opostos e tudo faz com muitas ganas. Escreve quando não produz. Produz quando não planta. Planta quando não traduz. Traduz quando não dança. Com raízes cravadas em solo de terra roxa e idéias regadas por todas as chuvas do mundo, segue. Sua única constante é a mudança.

 

 

do que sei sobre antifa

 

na minha terra dizem que fascista não ganha

porque a gente sabe com exatidão onde

dói o abismo são linhas de conhecimento

muito duras e tantos anos entre água

e seca absoluta nos ensinaram a valorizar

a força de um não diante da ameaça mais

perigosa e medonha possível

 

diante do horror um pé vai na água

e o outro no inferno a gente se sustenta no

balanço dos que conseguem pisar ligeiro

no mangue mesmo quando tudo indica

que afundar é a próxima cena na sequência

dos dias desta primavera

 

aqui também me contam que o desejo é tão

forte como a nossa imagem no espelho

um corpo para o qual o tempo passa depressa

e o outro onde ainda se encontram novas marcas

desníveis fora do susto da recordação

você me pergunta sobre os três pontos e eu respondo

não faço a menor ideia de como eles surgiram

porque sinto que a minha memória apaga

todas as formas de voltar para casa

todas as formas de arranhar com carinho

 

não importa se faz muito calor ao meio-dia na rua

do hospício ou se você me diz que podemos dar

um intervalo no tempo da madrugada aberta

quando eu defendo o meu corpo também defendo

o meu território e aqui sem nenhum amparo

sozinha mesmo que você repita não durma

eu entendo de maneira transversa

porque a minha terra sempre será a palavra de ordem

contra tantas forem as chances de invasão”

Priscilla Campos nasceu em Recife. Escreve e pesquisa. Mestra em Teoria da Literatura, jornalista, crítica literária e poeta; estuda literatura hispano-americana e as relações entre corpo, linguagem e espaço.

 

 

Ah! Só para não esquecer: #EleNão

*Escreveu algum texto literário antifascista? Manda pra coluna!

**Se você é uma escritora ou tem alguma sugestão de autora para apresentarmos, envie e-mail para bruna.escaleira@azmina.com.br e nos conte tudo 😉

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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