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Maria Clara Araújo dos Passos
13 de março de 2023

Sem travestis e mulheres transexuais, não há projeto democrático

Diante do crescimento de “feminismos” transfóbicos, são urgentes os posicionamentos que incluem nossa população no debate sobre desigualdades.

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Maria Clara Araújo dos Passos - colunista

Nesse 8M, a cobertura da Revista AzMina escolheu falar de e com travestis e mulheres trans. Diante do crescimento de “feminismos” transfóbicos, são urgentes os posicionamentos que incluem nossa população no debate sobre desigualdades, e reconhecem nossa contribuição na luta pela igualdade de gênero e o fortalecimento dos direitos humanos. 

Convidada para colaborar, escolhi dividir  algumas reflexões em torno de Pedagogias das Travestilidades, trabalho em que compartilho uma leitura sobre a luta emancipatória do Movimento de Travestis e Mulheres Transexuais no Brasil. Por meio de uma escavação epistemológica (que aprendi com a Professora Claudia Miranda – UNIRIO), mostro como a práxis – ação e reflexão – político-pedagógica desenvolvida pelo Movimento desencadeou o autorreconhecimento crítico de uma parte da nossa população. E o 8 de março é um ótimo momento para mais pessoas conhecerem essa história.

Em 5 anos de graduação em Pedagogia, entre a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ouvi diversas vezes que é na escola que nos reconhecemos como sujeitas/os, como cidadãs/ãos. Minha hipótese é diferente. No caso da população de travestis e transexuais, o processo de autorreconhecimento como cidadãs, como “sujeitas políticas e de políticas”, acontece em outro espaço de formação político-pedagógica: no movimento social. 

Em 2022, comemoramos 30 anos da fundação da Associação de Travestis e Liberados (ASTRAL-RJ). Nós, pesquisadoras e pesquisadores, marcamos 1992 como o início de um movimento social de travestis, organizado em nível nacional, em razão da ASTRAL ter desencadeado teias que se expandiram por todo o Brasil. Foi a partir da insurgência da ASTRAL que outras organizações lideradas por travestis surgiram.

Insurgência política 

Em 15 de maio de 1992, Jovanna Cardoso, Elza Lobão, Josy Silva, Beatriz Senegal, Monique du Bavieur e Claudia Pierre France, seis travestis negras, insurgiram criticamente diante da violência do Estado brasileiro, mesmo após a redemocratização, e frente à epidemia de HIV/Aids. Desde então, testemunhamos diferentes cenários políticos no Brasil, com aberturas e recuos. Enquanto isso, as teias do Movimento se expandiram, ampliando agendas e firmando a contribuição da população de travestis e transexuais na construção democrática deste país.

A partir da década de 2000, com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) à presidência do Brasil, as oportunidades políticas cresceram. Campanhas como “Travesti e Respeito”, em janeiro de 2004, fruto de uma parceria com o Ministério da Saúde, mostraram que podemos estabelecer diálogos estratégicos do ponto de vista político-institucional, e de co-construir as políticas públicas dirigidas à nossa população. Se é sobre nós, queremos e devemos participar.

A partir de 2010, de forma um pouco mais expressiva, testemunhamos a entrada de travestis e transexuais nas universidades brasileiras. Aprovações no ENEM, como a minha, de Ana Flor Fernandes Rodrigues e Amanda Palha, foram amplamente noticiadas na mídia. Nesse mesmo período, o transfeminismo se destacou no Brasil como práxis teórico-política, que problematiza o feminismo, o movimento social e a própria academia. 

Leia mais: Transfeminismo: porque é urgente compreender essa luta?

Em reação aos ganhos até então conquistados pelo Movimento Feminista e LGBTQIAP+, a agenda da igualdade de gênero e da valorização da diversidade passaram a ser distorcidas e utilizadas como estratégia político-eleitoral de uma extrema-direita no país. A “ideologia de gênero” passou a ser acionada, por exemplo, contra propostas educacionais que procuram reparar a ausência de travestis e transexuais nas escolas e universidades

Contra narrativas redutoras

O nosso posicionamento teórico-político frente a essas ofensivas antidemocráticas, como pesquisadoras e ativistas, deve ir contra a narrativa que reduz os investimentos do Movimento de Travestis e Mulheres Transexuais a questões identitárias ou a uma mera “agenda de costumes”.  

Apesar do êxito de Jair Bolsonaro em 2018, nossa população também comemorou a vitória eleitoral de três travestis negras: Erica Malunguinho, Erika Hilton e Robeyoncé Lima. Em 2020, o mesmo país que assassinou 175 travestis e transexuais, testemunhou 294 candidaturas trans na disputa eleitoral, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). O resultado foi igualmente decisivo: mais de 30 pessoas trans eleitas. Destaco aqui Benny Briolly e Lins Roballo. Em 2022, duas travestis foram eleitas para a Câmara Federal com votações expressivas: Erika Hilton e Duda Salabert. 

Leia mais: Transfobia e violência sequestraram debate sobre candidatas trans e travestis nas redes

Em Pedagogias das Travestilidades* e em outros trabalhos publicados, mostro como coube à população de travestis e mulheres transexuais no Brasil, sobretudo negras, criar meios de afirmação coletiva de uma cidadania crítico-reflexiva. Mesmo diante da constante tentativa de nos colocar fora das linhas que delimitam a condição de cidadania, ou mesmo de humanidade.

Nessas três décadas, tivemos avanços. Entre (in)visibilidades, disputas e afirmações nas “bordas da política”, o Movimento de Travestis e Mulheres Transexuais vem se (a)firmando como um contundente ator coletivo. Nossa reivindicação neste momento em que o Brasil passa mais uma vez por uma redemocratização – ou transição – é: sem travestis e mulheres transexuais, não há projeto democrático!  

*Pedagogia das Travestilidades” é o primeiro livro de Maria Clara Araújo dos Passos,  lançado em 2022 pela Editora Civilização Brasileira, resultado de sua pesquisa acadêmica. Uma versão preliminar desse texto foi apresentada no evento “30 anos de Movimento Trans no Brasil: (in)visibilidades, disputas e afirmações” no mesmo ano.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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