“Gosto muito de como você se veste”, ela me disse, correndo os olhos pelo meu corpo e apontando com desdém o dedo indicador para a minha combinação de blusinha preta e saia. Talvez ela tivesse ficado com dó de mim, lá quieta, no canto do quarto, enquanto eu esperava que ela e as outras meninas, umas 5 ao todo, se aprontassem.
Estávamos naquela clássica cena das amigas se arrumando para sair. Jovens entusiasmadas, fazendo planos para a noite, trocando peças de roupa entre si. Menos eu, a gorda, porque claro, roupa nenhuma de amiga jamais me serviu. Então eu ficava lá, assistindo, até que finalmente saíssemos de casa.
Era esquisito. Meu corpo presenciava, mas não vivia aquele momento, não compartilhava daquela experiência. Apesar do desconforto, não estar lá não era uma opção. Na fase em que sua identidade é também formada pela identidade do grupo do qual você faz parte, se ausentar era como deixar de existir, e eu já me sentia invisibilizada demais para abrir mão de qualquer momento de pertencimento, mesmo que hostil. E assim aquela situação insólita – mais uma na minha vida de gorda – aconteceu.
Depois de dizer “Gosto muito de como você se veste”, ela, que era considerada pelas amigas a mais bonita e desejada entre nós, completou: “Gosto porque DISFARÇA BEM AS SUAS FORMAS!”. Pois é. Foi isso mesmo que ela me disse, com essas palavras, sem tirar nem por.
Se para ela aquilo era um elogio, foi exatamente assim que eu recebi suas palavras. Eu tinha 20 e poucos e, acostumada a vida inteira a ser criticada pelo tamanho do meu corpo, menos mal que, apesar de gorda, eu sabia disfarçar bem… Como se realmente fosse possível esconder que tem uma pessoa gorda debaixo de uma roupa preta. Mas é isso que nos ensinam.
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Quando se é gorda, parece que o que a gente tem que fazer é isso mesmo: disfarçar, mas não só o nosso corpo, não é suficiente. Querem que a gente disfarce a nossa existência! Porque não adianta a roupa que cobre nossa pele, todo mundo nos vê, e mesmo com as roupas mais chamativas, o que acontece é que quem está ao nosso redor, na verdade, parece nos ignorar.
É como se gordura fosse algo contagioso, mas tão contagioso, que só de chegar perto ela passa. E então a gente vai sendo condicionada a se diminuir, a não fazer barulho, a não incomodar, a não chamar a atenção, sabendo que os espaços não foram feitos nem para nossos corpos, nem para a nossa essência.
É do bar com cadeira de plástico ao momento de socialização com as amigas. É da catraca do ônibus às festas. É da poltrona do avião e do cinema, aos relacionamentos. É da calça jeans ao ambiente profissional… E por aí vai. A gente tá sempre tentando se encaixar em um mundo que não está disposto a nos ceder espaço.
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Mais do que isso, a gente tenta se encaixar em um mundo que considera ok uma personalidade de Instagram que se autodenomina coach de emagrecimento fazer e divulgar que fez sete dias de jejum, estimulando em seus mais de 6 milhões de seguidores o gatilho das práticas que conhecidamente levam às mais graves consequências físicas e psicológicas relacionadas às dietas, como bem apontam os pesquisadores do Programa de Transtornos Alimentares da USP.
Assim, a violência da gordofobia é tão simbólica quanto concreta, a partir do ideal de um corpo que, na verdade, é uma abstração. Aquela “barriga chapada” propagada pelas revistas do segmento “Boa Forma” dos anos 1990/2000, especialmente destinadas ao público feminino, tornou-se a “barriga negativa” nas redes sociais; e aquelas práticas de dieta sem pé nem cabeça que eram experimentadas na individualidade, agora são compartilhadas sem qualquer pudor na web.
O que se espera mesmo é que o corpo não exista, e a presença gorda plena em qualquer espaço denuncia toda a perversidade desse sistema, em gradações inconcebíveis. A invés de ver a existência gorda como ato de coragem, como bem escreveu a jornalista Jéssica Balbino, que tal rever mesmo a hostilização e preconceito?