
A recente entrevista da cantora Adele para a Oprah colocou o emagrecimento da artista com mais de 120 milhões de discos vendidos em todo o mundo, mais uma vez, em discussão. Apesar de ninguém ter nada que se meter com as decisões que toma em relação ao seu corpo, Adele não se furtou de responder aos questionamentos da apresentadora – afinal, nos acostumamos com esse assunto fazendo parte da rotina das entrevistas, como demonstrado em “O Peso e a Mídia”.
Lá pelas tantas, Oprah perguntou se Adele não se preocupava que seu emagrecimento pudesse fazer com que outras mulheres se sentissem mal com seus próprios corpos. A cantora respondeu: “Não é minha função validar o que as pessoas sentem em relação aos seus corpos. Estou tentando resolver a minha própria vida”.
Insensível da parte de Adele? Egoísta? Irresponsável? Ou simplesmente estamos novamente vendo o lado humano de uma artista que, como a maioria delas, acostumamos a desumanizar para nosso próprio consumo e deleite?
Na quinzena passada, falávamos sobre a triste despedida de Marília Mendonça e vimos que até no obituário pareceu mais interessante ao jornalista que o escreveu falar do peso da artista. Para além das discussões sobre o desvirtuamento das funções sociais da mídia em geral, e da imprensa de forma específica, focadas no puro entretenimento e sensacionalismo, hoje chamo atenção a outro ponto que Adele joga na nossa cara: a constante vigilância em relação aos nossos corpos – agora sobre o quão pequenos eles não podem ser. Essa questão também aparece na causa antigordofóbica.
Sim, representatividade importa, e ter referências de corpos como os nossos em lugares positivos e de destaque nos ajuda a entender que não há nada de errado com a gente por causa do nosso tamanho, como nos fizeram acreditar a vida inteira. Ainda mais em um contexto no qual, como trouxe aqui certa vez, o desejo gordofóbico em última instância é que a gente simplesmente não exista.
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Adele nos mostrava que era possível que o nosso corpo, como o dela, não nos limitasse; que o nosso mérito, a despeito do nosso corpo, falasse por nós. No entanto, se olharmos bem, vemos que não é bem assim. Ou é apenas quando e como convém. Oprah, que também é uma mulher emagrecida, parece que se esqueceu de como as coisas funcionam e reproduz o que aconteceu com ela própria e tantas outras que emagrecem sob os holofotes. Kelly Osbourne, a filha de Ozzy, é sempre lembrada pelo seu “antes e depois”, como se seu corpo gordo fosse um fantasma a assombrá-la.
Não é função de Adele, nem de ninguém, validar a existência de um corpo, que por si só se valida ocupando um lugar ao sol desde que do mundo passou a fazer parte. O que está em jogo aqui também não é a perspectiva da representatividade ou a falta dela, mas a busca incessante por validação, algo que nos ensinaram a fazer desde cedo, e agora, com o excesso de autoexposição nas redes sociais, tem se escancarado ainda mais.
É como se aquele biscoitinho que a gente ganha em forma de coraçãozinho, quando posta uma foto em que acha que tá gata, legitimasse toda a nossa existência. E aquele elogio que pessoas gordas recebem por sua inteligência, por sua competência, por seu talento, por sua graça… Apesar de serem gordas. É o famoso “bonita de rosto” – como se fosse possível separar uma coisa da outra, no caso o rosto do corpo.
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Ao termos nossos corpos hostilizados e nossos feitos elogiados, experimentamos uma espécie de dissociação de nossa dimensão física, concreta, para nossa dimensão estética, virtual. Como resultado, passamos a superdesempenhar de um lado e negligenciar de outro. E, assim, a necessidade de validação a partir da existência de outra pessoa se torna uma constante cada vez maior, a ponto de nos sentirmos traídas quando alguém como Adele deixa de nos representar.
A reflexão a partir disso mora justamente na casa daquilo que mais queremos combater: a redução das pessoas aos seus corpos, sejam eles gordos ou magros. Vamos pensar?