No carnaval a nudez está liberada. Seios, bundas, coxas desfilam dançantes na Sapucaí, nas praças, na TV. Nem a mais moralista das comadres se choca, habituada à cultura tropical. Enquanto isso, numa esquina qualquer de São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro ou Buenos Aires, uma imagem colada no muro causa alvoroço, polêmica, discórdia. A fotografia de uma vulva em close, aberta, natural, acaba rasgada por algum transeunte na ânsia de banir tamanha obscenidade do espaço público.
Se a nudez feminina é tão naturalizada pela mídia na cultura ocidental, por que a genitália da mulher choca tanto? A partir dessa inquietação, as designers gráficas Karen Ka e Kelly Cristina Santos criaram o projeto Lambe Buceta. Ao espalhar lambe-lambes com fotografias ou desenhos da genitália feminina junto a poemas e frases de empoderamento por vias urbanas, o projeto tem como objetivo naturalizar a imagem da vulva, representando-a fora do contexto sexual.
“Mas o que as senhoras e crianças vão pensar?”, perguntam curiosos às criadoras do projeto. “Nós respeitamos as senhoras de idade, elas também têm bucetas e são lindas. É possível que elas tenham chegado à idade de serem consideradas senhoras sem nunca terem escutado isso. Nós respeitamos as crianças e achamos muito importante que meninas saibam desde pequenas que suas bucetas são suas e são lindas. Também achamos muito importante que meninos tenham a oportunidade de ver a representação gráfica de uma vulva fora do contexto sexual/pornográfico e aprender que devem ser respeitosos”, respondem.
“As maiores críticas que recebemos são em relação ao nome do projeto”, aponta Karen. Buceta, xoxota, periquita, perereca, pepeca, xana, xibiu, xinim, prexeca, xereca, grelo, perseguida, rachada, tcheca. O estranhamento em relação à vagina vai muito além do aspecto visual. Os próprios nomes oficiais ou populares relacionados a ela também soam como algo clandestino, embaraçoso, que não deve ser dito a qualquer hora — muito menos colado, em letras garrafais, em plena praça pública. É por isso que, ainda que use poucas palavras, este projeto tem muito valor literário. Afinal, naturalizar os nomes dados à vulva é essencial para que se possa falar, refletir, escrever, poetizar sobre ela sem receio.
“Tudo começou quando li o livro Contos de Escárnio da Hilda Hilst e fiquei impressionada com uma personagem que tem um fetiche por desenhar bucetas. Decidi fazer isso também e descobri que não conseguia. Então percebi que era uma questão pessoal que eu precisava trabalhar”, conta Kelly. A partir daí, a artista concebeu uma série de lambes com desenhos de mãos e grafismos sobre fotografias, trazendo frases como “sua buceta é linda”. “Tem uma pegada afetiva, queria falar pras outras mulheres o que eu queria que tivessem dito pra mim”, diz.
A segunda série de lambes foi criada por Karen a partir das formas de interação com a vagina. “São selfies de bucetas, chamo de ‘buselfies’, acompanhadas pelas palavras ‘olha, toca, molha, goza’. Comecei a perceber como a gente interage pouco com a nossa buceta, bem menos do que os homens interagem com o pau. Por ela ser anatomicamente mais escondida, você precisa parar, pegar um espelho ou uma câmera, ter a luz certa para observá-la. Percebi como esse exercício é importante”, relata.
As duas costumam sair para colar os lambes sozinhas. Apesar de terem receio de sofrer algum tipo de assédio, acreditam que se colocar desta forma é justamente uma forma de combatê-lo. “Nossos lambes duram muito pouco tempo na rua. Em geral, menos de 24 horas, porque alguém sempre arranca”, conta Kelly. “Acho que isso faz parte. Nossos lambes incomodam mesmo, sabemos disso. Acho massa! Incomodou, arrancou, quer dizer que nosso trabalho é mesmo necessário”, ressalta Karen.
Para 2017, a dupla prepara novas séries de lambes em parceria com outras escritoras e artistas. “O projeto começou despretensioso e cresceu muito rápido. Recebemos muitos convites para eventos, contatos de pesquisadores, propostas de parcerias. A gente não sabe pra onde ele vai nos levar”, diz Kelly. “O importante é não parar de se colocar. Agora com a campanha ‘Cidade Linda’ é ainda mais importante ainda estar na rua, pichar, colar”, lembra Karen.
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