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Punir ou educar? PLs tentam modificar Lei Maria da Penha

1 a cada 3 projetos que tentam alterar a Lei Maria da Penha prevê maior ou novas formas de punição ao agressor

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Essa semana a Lei Maria da Penha completa 14 anos. Ela é considerada uma lei histórica, por transformar a forma como a violência doméstica é encarada no Brasil: um assunto de ordem pública e não só “briga de marido e mulher” na qual “não se mete a colher”. E também por focar a atuação pública na prevenção da violência e não apenas na punição do agressor. No entanto, há muita gente interessada em mudar isso. 

Entre 75 projetos criados em 2019 que tentam alterá-la, 27 criam novas punições ao agressor ou aumentam as já previstas. As punições vão do aumento de pena ao uso de tornozeleiras eletrônicas e à vedação de nomeação para cargos públicos e eletivos. Apenas um desses 27 projetos propõe medidas de proteção às vítimas. 

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Entre os projetos sobre a Lei Maria da Penha analisados por Elas no Congresso, cinco se destacam pelo endurecimento das penas aplicáveis ao crime de violência contra a mulher. Em alguns casos, a medida é o aumento do tempo de prisão; em outros, a impossibilidade de aplicação de penas alternativas – o que já está previsto na lei.

Hoje, a Lei Maria da Penha estabelece que todo o caso de violência doméstica é crime, deve ser apurado pela polícia e denunciado ao Ministério Público. Esses crimes são julgado nos Juizados Especializados de Violência Doméstica contra a Mulher, criados a partir da legislação – nas cidades em que ainda não existem, nas Varas Criminais. Caso o agressor seja considerado culpado, a lei determina que haja até três anos de prisão e encaminhamento para terapias ou grupos educativos, mas não permite a troca da pena por serviço comunitário ou pagamento de cestas básicas, por exemplo. 

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No entanto, isso é um pedaço da lei. A maior parte dela é focada em definir o que é violência doméstica – incluindo a violência patrimonial, psicológica, sexual e moral – e em criar mecanismos de proteção à mulher e seus filhos, como as medidas protetivas. Ela ainda determina o encaminhamento a serviços de proteção, como as casas abrigo e de assistência social. 

Entram em cena aqui duas visões muito importantes no direito penal. A visão abolicionista é contra as formas de castigo usadas hoje pela justiça, principalmente as prisões, defendendo que elas sejam substituída por formas de conciliação e reparação. Já a outra visão acredita que a punição criminal pode ter efeito positivo para a sociedade, seja como prevenção de novos crimes ou para a restauração. A essa última muitos se referem como “punitivismo”, embora o termo seja usado de maneira pejorativa. 

A Lei Maria da Penha, apesar de prever punição, foi pensada com muito mais foco no suporte à mulher e na educação como forma de prevenção à violência doméstica. Por isso estes PLs que prevêem maior punição foram avaliados como problemáticos por organizações que defendem os direitos das mulheres. 

E os agressores são punidos? 

Em 2019 havia 6.742 homens presos por crimes de violência doméstica no país, segundo dados do Ministério da Justiça. No mesmo ano, o Disque 180 do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos recebeu 67.438 denúncias de violência doméstica e familiar. 

Os dados mostram que os casos de penas com prisão não são maioria. Um estudo feito pela pesquisadora Carolina Salazar, do Grupo Asa Branca de Criminologia, com dados dos casos de violência de doméstica que chegaram à vara especial de Recife em 2014 mostram que apenas 15% dos agressores que chegaram a ser condenados tiveram sentenças de encarceramento, e em 95% dos casos essas penas não chegaram a um ano. Nos outros 85% dos casos houve a substituição ou suspensão da pena. Os números parecem pequenos, mas a pesquisadora alerta: o número de presos por violência doméstica é maior que o de presos por extorsão, lesão corporal e estelionato, por exemplo. 

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Há ainda muitos casos em que os agressores ficam presos durante o processo: 17% deles ficaram presos preventivamente, e a maior parte deles não recebeu sentença de encarceramento no fim do processo. Para a pesquisadora, a suposta prevenção consiste em uma pena antecipada.  

E qual o perfil de quem a justiça está prendendo? Pardos e pobres. Carolina também analisou os perfis de homens e mulheres envolvidos em conflitos que chegavam à vara de violência doméstica e familiar contra a mulher de Recife. Entre homens e mulheres, a maioria era parda e de classes sociais menos abastadas. “Pessoas que aparentavam ser negras ou pardas foram, sem dúvidas, as mais vistas dentro da Vara, tanto que surpreendia quando pessoas brancas ou um pouco mais claras sentavam na cadeira do réu ou da ofendida”, afirma em seu trabalho. Vale lembrar que mais de 60% da população carcerária do país é negra.

E por que punir é problemático?

Para especialistas que trabalham com o tema da violência contra a mulher as proposições estritamente punitivistas agem no sentido contrário do que a lei busca: elas afastam as mulheres da rede de proteção. Com medo de verem os agressores, com quem na maior parte das vezes mantém laços de afetos, severamente punidos, elas desistem de denunciá-los. 

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“Quando criamos o punitivismo muito forte nos afastamos da vítima. É o Estado que pune o agressor, mas é a mulher quem o denuncia. Colocamos sob a mulher uma responsabilidade que a afasta da denúncia”, explica Marilia Montenegro, professora da Unicap e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisadora do grupo Asa Branca de Criminologia.

E é importante lembrar que mesmo nos casos onde há denúncia e encarceramento do agressor, isso não é garantia de que a mulher estará protegida. AzMina já mostrou que os muros da prisão nem sempre são capazes de conter agressões. Que nesses casos podem se tornar ameaças, tortura e controle, quando não custa a própria vida da mulher.

Prender não é o único modo de punir

As penalizações estão presentes também nos projetos de lei que focam em medidas protetivas. Dos 23 projetos que tratam do tema, nove deles propõem o monitoramento eletrônico de agressores para impedir que eles cheguem perto das vítimas, sugerindo o uso de tornozeleiras eletrônicas.

Um dos projetos criados em 2019 que trata do monitoramento eletrônico foi considerado desfavorável pela Themis, organização que trabalha no combate à discriminação contra mulheres no sistema de justiça. Segundo a organização, a necessidade de conhecimento da vítima em relação a localização do agressor deve ser apenas para sua segurança, não para controle de toda e qualquer movimentação do agressor. “O acesso deve ser apenas nas situações em que ele está próximo a ela”, afirma.

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E essas medidas também têm impacto no bolso. Parte desses projetos sugere que o pagamento das tornozeleiras eletrônicas seja feito pelos agressores. Eles se juntam a outros cinco projetos que trazem penalizações financeiras aos agressores, que vão do pagamento de multas ao ressarcimento dos cofres públicos pelo uso do Sistema Único de Saúde, o SUS, no atendimento às vítimas de violência – essa última tornou-se lei no ano passado. “Me parece que esses projetos de lei protegem o Estado e não a mulher”, afirma Lívia de Meira Lima Paiva, professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e autora do livro “Lei Maria da Penha na Prática”.

Além disso, segundo Marilia, é preciso lembrar que o impacto financeiro da punição da Lei Maria da Penha recai sobre a mulher. “É o dinheiro do marido dela, do pai dos filhos dela, que vai dizer que ou paga a tornozeleira ou compra roupa para as crianças”, afirma.

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Dados de uma pesquisa intitulada “Do juizado especial criminal à Lei Maria da Penha”, feita por Marilia, Carolina e outras pesquisadoras em uma vara de Recife com casos de 2007 e 2010 mostram que em 79% dos casos de violência doméstica homem e mulher eram ou já tinham tido um relacionamento. E são relacionamentos longos em sua maioria: de 7 a 15 anos. Além disso, mais da metade das vítimas (57,8%) possuíam filhos com agressor. 

“A mulher sente que está levando a família a julgamento, não apenas seu agressor. Ela vai ouvir da sogra, dos amigos e da família que acabou com a vida dele, do pai dos filhos dela”, diz Marilia. 

Quais as alternativas, então?

As alternativas estão no texto da própria lei: proteção, prevenção, conscientização. A Lei Maria da Penha nasceu como uma lei protetiva, que introduziu medidas integradas de prevenção à violência doméstica e medidas protetivas às vítimas dessas agressões.

Na própria redação da lei há artigos que afirmam que o objetivo é não só transferir ao casal, à família e ao Estado a responsabilidade de coibir as agressões, mas também às escolas, às universidades e à mídia. Ela prevê, por exemplo, medidas educativas em escolas e na sociedade. 

Para a proteção das vítimas, a lei estabelece criação de casas-abrigos para mulheres e seus filhos em situação de violência doméstica e familiar. Mas treze anos após a criação da lei, só 2,4% das cidades brasileiras tinham casas-abrigo para mulheres. Em 2019, AzMina mostrou que a escassez, distribuição desproporcional e a pouca divulgação desses espaços impedem que as vítimas de violência saibam que eles existem e consigam acessá-los. 

Para isso, porém, é preciso orçamento. Esse é inclusive um dos motivos pelos quais especialistas são reticentes às tentativas de alteração na Lei Maria da Penha – Elas no Congresso já mostrou que os PLs que tratam disso dispararam no Congresso em 2019. Eles pedem que os parlamentares se preocupem, primeiramente, com a melhor implementação do que já está previsto nela. 

“Lendo os relatórios da antiga Secretaria de Políticas para as Mulheres, vemos a dificuldade de convencer os parlamentares a dar orçamento para a implementação das medidas previstas na lei. A impressão é de que eles querem fazer alterações na Lei Maria da Penha por populismo. E na hora de liberar o dinheiro pra ter casas-abrigo? Parece demagogia”, diz Lívia. 

Entre 2015 e 2019, o orçamento da Secretaria da Mulher, órgão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, para atendimento às mulheres em situação de violência recuou de R$ 34,7 milhões para apenas R$ 194,7 mil, segundo levantamento do jornal Estado de S.Paulo. 

Mas e quanto aos agressores e às vítimas?

Vale lembrar que a Lei Maria da Penha proíbe a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras penas alternativas (como prestação de serviços comunitários), bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa. Ainda assim, segundo a pesquisa de Carolina, em muitos casos os juízes substituem o encarceramento por outros tipos de punição.

Uma das alternativas sugeridas é o uso da justiça restaurativa. Trata-se da  mediação e conciliação, colocando os envolvidos  no crime (denunciante e denunciado) como protagonistas e não dando apenas ao juiz o poder de decidir o futuro daquelas pessoas. Hoje, a justiça restaurativa é usada para crimes de menor potencial ofensivo.

O Supremo Tribunal Federal (STF), no entanto, decidiu em 2011 que não enxerga o crime de violência contra a mulher como de menor potencial ofensivo e, por isso, não admite as práticas de conciliação para casos de Lei Maria da Penha.

Um projeto de lei criado em 2019 prevê a possibilidade de o juiz encaminhar as partes envolvidas em casos de violência contra a mulher para núcleos de conciliação e resolução de conflitos. Ao receber o requerimento de medidas protetivas, o juiz determinaria o encaminhamento dos envolvidos para atendimento em núcleos modernos de resolução de conflitos, como os centros judiciários de conciliação e mediação, as oficinas de justiça restaurativa e as de direito sistêmico.

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A prática para casos de violência contra a mulher causa discordância entre especialistas. Um dos grandes riscos nos casos da justiça restaurativa é o da revitimização da vítima. Audiências de conciliação colocam agressores e vítimas frente a frente. Além de reviver a situação de violência, o processo de diálogo com o agressor, se mal conduzido, pode ser uma nova forma de violência para a vítima. 

Em 2017, o assunto foi tema  de uma audiência pública da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara. Existem estudos que mostram que a conciliação não é a forma mais adequada de se tratar casos de violência doméstica, segundo Fabiana Severi, professora de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo. “O próprio sistema interamericano de direitos humanos já aponta riscos e proíbe o uso de conciliação e mediação nos casos de violência doméstica”, defendeu. A ministra Cármen Lúcia, porém expressou posicionamento favorável à justiça restaurativa nesses casos. 

“Se, por um lado, a possibilidade de aplicação da justiça restaurativa nesses casos pacifica uma das principais críticas de uma parte da criminologia feminista, acerca da falta de autonomia da vítima e a expansão do sistema penal, por outro, sua aplicação representa alguns riscos e retrocessos para o tratamento e enfrentamento da violência doméstica”, diz Livia. “De forma resumida, a aplicação da justiça restaurativa não está sendo pensada com novos marcos de procedimentos, que levem em conta a especialidade desse tipo de situação, o que pode abrir margem para a revitimização da mulher em situação de violência doméstica”. 

Para a professora, a melhor alternativa seria o acompanhamento de perto da vítima por psicólogas e equipe técnica e o  encaminhamento do agressor a atendimento psicológico e grupos reflexivos, além da aplicação de medidas protetivas. “Mas não de maneira genérica, como se faz normalmente, mas com atenção ao que a vítima precisa”, afirma. Os casos de encarceramento seriam justificáveis “quando há um sério risco de feminicídio”. Ou seja: cumprir o que já está previsto na Lei Maria da Penha. 

O que são os grupos de conscientização

Foi sancionado em abril de 2020 o projeto de lei que altera a Lei Maria da Penha e determina que agressores de mulheres podem ser obrigados a frequentar centros de reeducação e “grupos reflexivos”, além de receber acompanhamento psicossocial – a reeducação, porém, não livrará o cumprimento da pena ao final do processo. Essas determinações já estavam presentes no texto original da lei. 

Tanto que projetos com “grupos de agressores” já aconteciam no país: neles, homens que respondem a processo judicial por violência contra a mulher participam de encontros para discutir temas como controle de raiva e agressividade, direitos humanos das mulheres, Lei Maria da Penha, comportamentos de risco, etc. Eles são acompanhados por equipes formadas por profissionais como psicólogos, assistentes sociais e advogados.

O índice de reincidência (voltar a cometer crime) dos homens atendidos pelo projeto Tempo de Despertar, em São Paulo,  é nulo, conforme disse o coordenador do grupo, Sérgio Barbosa, ao Universa., Dos 78 homens atendidos, nenhum voltou a ser denunciado por agressão contra a mulher.

“O empoderamento que damos a essa mulher é apenas ligar para a polícia”

“Não é um problema de redação da legislação, mas da implementação. É de como a sociedade encara a Lei Maria da Penha”, explica Marilia. Para Lívia, a solução para isso não é mudar a redação da lei, mas sua aplicação. “A saída é uma mudança de interpretação na lei, é um giro que coloque a mulher como protagonista, e não seu agressor”. 

Uma das discussões sobre a Lei Maria da Penha, que também é debatida em projetos de lei, diz respeito à autonomia da vítima. Em 2015, o STF e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entenderam que a ação por violência doméstica contra a mulher é chamada de “ação pública incondicionada”. Na prática, o Ministério Público só pode dar início à ação penal se a vítima autorizar, mas após o consentimento dela ela não pode mais influenciar o andamento do processo – ou seja, desistir dele. “Parece que o empoderamento de gênero que damos a essa mulher é apenas ligar para a polícia”, diz Marília. Defensores da mudança, no entanto, argumentam que ela atua para romper o ciclo de violência, em que o agressor manipula emocionalmente a mulher. 

No Congresso há um projeto que transforma esse entendimento jurídico em lei e outro que permite a suspensão da punição do agressor por vontade da vítima, desde que ela não esteja em situação de risco. 

“Quando você justifica o encarceramento do agressor mesmo contra a vontade da vítima, porque ela está imersa em um ciclo de violência, de qualquer maneira é o Estado dizendo que vai decidir por você”, explica Lívia. Ao mesmo tempo, a chamada “suspensão qualificada do processo”, segundo ela, precisa ser estudada. “O ideal seria estudar caso a caso, com essa mulher sendo acompanhada por uma equipe técnica”, explica. 

Conduta individual ou machismo estrutural?

Há ainda outros projetos de lei em tramitação que focam na criação de cadastros de agressores de mulheres. Um projeto do deputado Dr. Jaziel (PR/CE) prevê que as imagens dos agressores sejam exibidas em páginas da internet dos órgãos oficiais do Sistema de Justiça e Segurança. A relatora do PL, deputada Tabata Amaral (PDT-SP), foi contrária à proposta. “Existe o risco de que essas penas que apelam para a execração pública dos agressores sirvam como motivo para que as mulheres não denunciem, o que se mostra contraproducente e é um incentivo ainda maior à subnotificação”, disse. 

Outros seis projetos propõem inabilitar a pessoa condenada por crime praticado com violência contra a mulher para o exercício de cargos públicos, ou torná-la inelegível no caso de cargos eletivos. 

Para Marilia, essas proposições partem de um ponto de vista em que a violência doméstica é exceção, e não é. “Os homens que criam esses projetos, principalmente, sempre imaginam os outros homens no papel de agressor, não se veem nesse lugar. Isso para mim é o mais preocupante. Vamos cadastrar e proibir agressores de estar em lugares públicos? Parece que eles são inexistentes, e não é essa a realidade”, explica. 

*Há ainda outros projetos que têm impacto na implementação da legislação, mas alteram outras leis (como o Código Penal) ou criam novos textos. 

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