O exercício do jornalismo e da pesquisa científica em saúde no Brasil tem um aliado importante: os sistemas de informação do Sistema Único de Saúde (DATASUS). Sinan, SIH, SIA, SIM são alguns deles, que nos permitem conhecer não só as principais causas das buscas por atendimento na saúde pública do país, mas também quem são as pessoas internadas, por quais motivos e quando seus quadros de saúde resultam em morte. Também se pode conhecer quem está tendo filhos no Brasil, o que nos deixa saber que cerca de 20 mil meninas menores de 14 anos estão parindo todos os anos no país – vítimas de estupro de vulnerável, todas elas deveriam ter tido direito ao aborto.
O aborto, aliás, é um procedimento de saúde, assim como um evento comum na trajetória reprodutiva de quem pode gestar. No entanto, por ser uma prática criminalizada (exceto em caso de estupro, risco de vida para a gestante e anencefalia fetal), a leitura dos registros de atendimentos relacionados ao aborto nos sistemas de informação do SUS dão uma dimensão frustrante da realidade.
Embora estejam disponíveis a qualquer pessoa, a busca por esses dados implica muita paciência e interesse em aprender os caminhos tortuosos para chegar até eles. Mesmo quando buscamos respostas junto ao próprio Ministério da Saúde (MS), como fizemos para a elaboração da plataforma abortonobrasil.info, a orientação da assessoria de imprensa do MS foi não usá-los, pois “pode ser que sejam usados filtros que não darão o número certo”. Desestimulando a coleta direta nos sistemas de informação, a assessoria, por duas vezes, nos ligou dizendo que o recomendado era pedir a eles os dados que precisávamos, dificultando o acesso livre e transparente às informações.
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Essa dificuldade é o que motivou a criação do abortonobrasil.info, que tem o objetivo de facilitar o acesso aos registros, apresentando dados através da raspagem automática dos procedimentos de “Curetagem pós-abortamento/puerperal” e “Esvaziamento de útero pós-aborto por aspiraçao manual intra-uterina (AMIU)”, incluídos no Sistema de Informações Hospitalares (SIH/Datasus).
Os dados de internações, mortes e despesas por procedimentos de AMIU e Curetagem pós-abortamento foram escolhidos por serem os que nos dão a maior dimensão geral de como o aborto é tratado no Brasil (seja ele induzido ou espontâneo), e de quantas mulheres chegam aos hospitais públicos neste momento comum da vida reprodutiva. Ressaltamos que a curetagem é um procedimento invasivo e defasado, que não é recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) há mais de uma década. Mas o Brasil não avança nesses tratamentos e discussões justamente pelo tema ser um tabu e não ser abordado como saúde pública.
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Abortos clandestino e medicamentoso
Apesar de darem uma dimensão da quantidade desses procedimentos feitos por internação hospitalar após abortos espontâneos ou provocados (legalmente ou não), infelizmente, esses números não contemplam os abortos clandestinos que, feitos de forma segura, não resultaram na busca por atendimento em saúde. Também ficam de fora atendimentos dos abortos legais feitos com uso de medicamento e que não precisaram de esvaziamento uterino posterior.
“Não existe um código em que se registra o aborto com medicamentos. Por isso, uma sugestão é se guiar pelo CID, embora mesmo o CID O04, de aborto legal, não seja utilizado por unanimidade nem no serviço de aborto legal”, comentou a médica Helena Paro, do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual, o Nuavidas, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia.
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O registro do CID 10 (Classificação Internacional de Doenças – 10ª revisão) permite compreender o diagnóstico que levou ao procedimento hospitalar: se foi um aborto clandestino incompleto, infeccionado; se foi um aborto espontâneo finalizado com esvaziamento uterino; ou, mesmo, se foi um procedimento de aborto legal induzido via esvaziamento uterino. No entanto, não é possível dizer que todas/os as/os profissionais que registram o CID colocam exatamente o código correspondente.
O número de registros com o código de aborto por razões médicas e legais é muito baixo, por exemplo. E, devido ao aborto induzido ser crime no Brasil, pode ser que até o registro desse código esteja sendo evitado para a proteção das mulheres.
Chamamos a atenção, ainda, para os procedimentos de AMIU e curetagem realizados por via ambulatorial que aparecem no SIA/Datasus em menor número – e não estão sendo raspados para visualização no site abortonobrasil.info (escolhemos disponibilizar os dados mais abrangentes do Sistema de Informações Hospitalares).
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Análise dos dados disponíveis
Vale o lembrete: a leitura dos dados de saúde (do SUS) inseridos na plataforma abortonobrasil.info, sozinhos, não vão dizer tudo sobre a realidade do aborto no nosso país. A falta de padronização dos registros do CID 10, a subnotificação e, até, o erro de registros nos mantém com a ‘pulga atrás da orelha’ ao nos debruçarmos sobre os números. Por isso, também recomendamos às comunicadoras e pesquisadoras que sempre conversem com médicas, profissionais de saúde, estudiosas e especialistas em dados para compreender melhor os contextos que envolvem o aborto no Brasil.
“A gente fica catando informações nos sistemas (do SUS) para poder ter essa dimensão, mas é muito difícil. Nenhum desses sistemas responde à realidade”, avaliou Emanuelle Goes, doutora em Saúde Pública (ISC/UFBA) e pesquisadora no Cidacs/Fiocruz/Bahia. Ela explica que esse problema se dá porque o aborto é crime e as mulheres terminam não indo ao serviço de saúde, e também porque a forma como os dados são inseridos no sistema, sem, muitas vezes, uma preocupação com a qualidade da informação, “tudo isso vai fazer com que a gente esteja mais distante de um panorama completo”.
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Um caminho de leitura dos dados que sugerimos, para quem tem condições de se aprofundar, é cruzar esses procedimentos acima com o CID 10 registrado em outro sistema de informação: o de morbidade hospitalar. Nele, é possível acessar todas as internações e mortes que possuem como causa o aborto, que estão divididas em: “aborto espontâneo”, “aborto por razões médicas e legais” e “outras gravidezes que terminam em aborto”.
O uso desses outros sistemas de microdados, como o Tabwin do Ministério da Saúde, pode auxiliar, inclusive, a entender raça/cor, faixa etária e outras informações de perfil de quem acessa o serviço. Essa estratificação, inclusive, é uma demanda de quem trabalha com esses dados e com direitos reprodutivos, pois não se conhece oficialmente quem são as pessoas que abortam no Brasil.
“Seria interessante, por exemplo, separar no sistema o que é aborto por razões médicas do que é aborto legal (que inclui os casos de estupro)”, aponta Emanuelle.
A pesquisadora também pondera que precisaríamos ter uma ideia melhor de como chegam no SUS aquelas que provocaram o aborto clandestinamente. Na sua pesquisa de doutorado, Emanuelle identificou que mais de 90% das pessoas que eram internadas para terminar um aborto estavam em boas condições de saúde, “o que significa que elas fizeram o aborto com medicamentos, o Cytotec, e não tiveram complicações graves”.
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Olhar amplo sobre o tema
Os desafios são inúmeros, mas abortonobrasil.info é uma iniciativa pioneira que apresenta não só alguns dados do DATASUS, mas também da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), de criminalização de mulheres que abortam no Brasil, do cenário de países da América Latina e Caribe e, também, referências a estudos, sites, materiais didáticos, campanhas, iniciativas políticas e de comunicação, entre outras, referentes ao tema do aborto.
Para Emanuelle Goes, tornar essas informações acessíveis e disponíveis é fundamental. “Eu sou sempre favorável ao acesso à informação. Se é dado público, a sociedade precisa saber, e é o nosso papel também apoiar nisso.” A pesquisadora considera que ter uma ferramenta de fácil interpretação como a nova plataforma, “onde você abre e já consegue encontrar o que está procurando, ajuda o movimento social a pular várias etapas.”
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Morgani Guzzo é jornalista do portal Catarinas, especializada em direitos reprodutivos, e foi responsável pela produção dos conteúdos do site abortonobrasil.info, com edição de Joana Suarez e revisão de Bárbara Libório e Ester Pinheiro.