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“Se você aborta é porque não tem condições de seguir”

Diretora de documentário sobre gravidez incompatível com a vida, Eliza Capai lança site para guiar outras mulheres que passam pelo mesmo

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A documentarista Eliza Capai, assim como tantas mulheres, nunca pensou que faria um aborto. Mas em 2020, em meio à pandemia e à alegria dos primeiros meses de uma gravidez, ela obteve o diagnóstico de que o feto tinha uma má-formação que impossibilitava sua vida fora do útero. Vivendo naquele momento em Portugal, Eliza pôde interromper a gestação, e teve o devido acompanhamento médico no processo. No país europeu, o aborto voluntário é legalizado até a décima semana de gestação, e não tem limite de tempo em casos de interrupção médica por incompatibilidade com a vida.

Se estivesse no Brasil, a história de Eliza teria sido diferente. Aqui o aborto é permitido em casos de anencefalia, mas para outras más-formações, a interrupção da gestação depende de uma autorização jurídica, que avalia cada caso individualmente. Muitas vezes o  pedido é recusado, obrigando mulheres a levarem a gestação até o final, carregando por meses um feto cuja morte é iminente. 

AzMina já fez uma reportagem sobre como em casos de malformações fetais gravíssimas, a interrupção da gravidez é um direito que preserva vidas.

O luto de Eliza, somado à sua indignação diante da crueldade à qual mulheres brasileiras estão expostas, deu origem a Incompatível com a vida, um documentário onde ela retrata a própria experiência, e relatos de outras mulheres que viveram histórias semelhantes. Um ano depois da estreia do filme, premiado no Brasil e exibido internacionalmente, Eliza lança o site incompatível.com.br, que reúne informações, canais de acolhimento, e um passo a passo para quem busca judicializar um pedido de aborto. 

Eliza conversou com a AzMina sobre essa iniciativa, a repercussão do filme, e a necessidade de contarmos histórias sobre o aborto para combater os estigmas que rodeiam esse acontecimento tão comum, mas tão solitário, na vida das mulheres.

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Cena do documentário "Incompatível com a vida", que fala sobre aborto legal de fetos que não podem sobreviver fora do útero, mostra mulher gritando desesperada enquanto toma banho

SOBRE NARRAR O ABORTO

AzMina: Em Incompatível com a vida vemos muitos registros da sua gestação e do aborto, mas também conhecemos a história de outras mulheres. O que te levou a unir a sua história com a delas?

Eliza Capai: Eu estava entediada na pandemia, com as filmagens canceladas, e me preparando para um projeto em que eu filmaria só mulheres grávidas, era um projeto sobre o amor. Me parecia a maior declaração de amor ao mundo, perpetuar a vida num mundo pandêmico, e especialmente no Brasil, que além da pandemia ainda tinha uma situação de ódio à vida pelo nosso governo. Começo a me filmar como exercício de pensar como eu filmaria as outras mulheres. E, ao mesmo tempo, eu estava grávida, eu estava feliz, e ninguém estava me vendo grávida. Era um jeito de eu me ver naquele momento. 

Quando eu recebo o diagnóstico da incompatibilidade com a vida, eu entendo que aquela tristeza era uma tristeza que muitas outras pessoas sentem ao receber o diagnóstico. A gente é ensinada a só contar da gravidez no quarto mês, porque se perde muita gravidez até o terceiro. Tem um ensinamento que, se dar ruim na sua gravidez, esse é um assunto seu, fique com isso em silêncio. Mas aquela solidão, ela deixava a tristeza mais triste.

Por outro lado, eu comecei a sentir muita raiva de pensar a situação no Brasil. Eu tive sorte, porque eu tinha acabado de me mudar para Portugal, onde uma junta médica me aconselhou a interrupção da gestação. Eu ficava pensando como seria estar no Brasil naquele momento. E foram esses sentimentos de tristeza e de raiva que me impulsionaram a fazer o filme. Não pensei em linguagem, deixo a câmera no tripé, e de vez em quando aperto o rec.

Depois, quando apresentei esse material para um laboratório de filmes em desenvolvimento foi aconselhado não fazer esse filme, que ali não tinha história, que aquilo não era tema. E aí, naquele momento, eu tenho certeza que eu precisava conversar com outras mulheres para não ser um filme narcisista de uma diretora que quer exibir a sua dor, e sim sobre um problema social, que é uma questão que é comum a muitas e que o Estado faz com que a experiência fique ainda muito mais traumática e coletiva.

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AzMina: Aqui n’AzMina temos uma seção em que leitoras mandam suas histórias de aborto, e que são publicadas sob anonimato. O aborto, ainda que seja uma experiência muito comum, é vivido em segredo. Como foi mostrar o seu próprio aborto?

Eliza:  Eu tinha um privilégio muito grande de poder falar sobre o meu aborto. Eu não cometi um crime. Boa parte das mulheres no Brasil não fala de seus abortos porque seria uma confissão de um crime. Essa é uma das crueldades da lei, porque ela não permite que a gente possa ser dona da nossa própria história. Nós elaboramos nossas questões através da fala, então, ser vetada de falar significa ser vetada de elaborar e curar. E, em geral, são abortos clandestinos, experiências traumáticas, de medo de perder a vida, de perder útero, de ser presa, e você não pode tratar esse trauma.

Por um lado, eu me senti na obrigação de falar, porque dizia respeito apenas a mim, e sim a um conjunto muito grande de pessoas. E eu podia falar porque eu estava fazendo uma interrupção legal da gravidez. Aí eu decido, que eu deveria ser a que mais me exporia, como uma forma de proteção às demais, já que eu tinha o controle da edição do filme. 

Cena do documentário "Incompatível com a vida", que fala sobre aborto legal de fetos que não podem sobreviver fora do útero, mostra mulher sentada em janela, com joelhos encostados no tronco e cabeça baixa. A imagem transmite desolamento e risco

SOBRE AJUDAR OUTRAS MULHERES

AzMina: Foi difícil encontrar outras mulheres para falarem publicamente de aborto?

Eliza: A gente fez alguns caminhos de busca de personagens, via Defensoria Pública, via maternidade pública, e no final eu fiz um post no Instagram, que foi o primeiro momento em que falei pelo que eu tinha passado. Metade das personagens acabaram vindo a partir deste post. Eu senti naquele momento que existia uma necessidade muito grande de falar, de elaborar e dar algum sentido a um evento da vida que parecia não ter sentido. Quando a gente perde uma gravidez desejada, um filho desejado, isso não faz sentido. Para mim o filme foi uma criação do sentido, que a minha experiência de tristeza e solidão servisse para que outras mulheres se sentissem menos sozinhas e menos tristes. 

E todas queriam falar. Pra elas, fez parte do processo de cura. E muitas delas tampouco tinham falado, assim como eu não tinha, com outras pessoas que tinham passado pela mesma situação. Então era uma troca ali entre nós, que foi catarse, e que a gente sabia que poderia ser catarse de outras mulheres. 

AzMina: De onde que veio a ideia de fazer o site incompativel.com.br?

Eliza: Quando eu recebi o diagnóstico de que meu feto era incompatível com a vida, eu não sabia que no Brasil era possível judicializar o aborto nesses casos. A mulher que recebe esse diagnóstico pode falar que, assim como um feto anencéfalo, o próprio feto não vai sobreviver, e entrar com uma ação judicial [pedindo autorização para o aborto] que pode ser aceita ou negada. Outra coisa que eu descobri nesse processo foi que boa parte dos hospitais têm como protocolo entubar o bebê, que nasce mesmo sem nenhuma chance de sobreviver. Me parece um protocolo de muito sofrimento para o bebê e para a família, que não tem a chance de se despedir. Os breves momentos de vida daquele bebê são momentos de dor, de ser entubado, de ficar sozinho. 

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Tive vontade de criar um site que fosse um lugar de acolhimento para quem está passando por uma gestação de feto incompatível com a vida, para que se tenha informações do que se pode fazer, levar a gravidez adiante ou interromper, e se levar adiante, buscar por serviços paliativos. E se quiser judicializar, tem o passo a passo para essa judicialização. O filme tem esse legado emocional, mas é um tanto subjetivo. E o site tem uma objetividade, um pragmatismo que me reconforta, de saber que agora essa informação está lá. E espero que quem precise chegue nela.

Cena do documentário "Incompatível com a vida", que fala sobre aborto legal de fetos que não podem sobreviver fora do útero, mostra a realização de uma ultrassonografia, vemos a pessoa que opera o equipamento, a barriga da gestante e mais duas pessoas ao fundo

SOBRE A JUDICIALIZAÇÃO DO ABORTO

AzMina: No seu caso, que estava em Portugal, você não teve que passar por essa judicialização. Consegue imaginar o que significa esse processo em meio ao luto de descobrir uma má-formação fetal?

Eliza: Eu fiquei duas semanas esperando a Junta Médica aprovar a interrupção, e essas duas semanas foram as mais próximas que eu já cheguei de enlouquecer. É muito estranho você ver a sua barriga crescendo e falar “eu estou gestando uma morte”. O que me deu força para fazer o filme tem a ver com isso, porque eu não consegui imaginar o que era naquele momento de dor tão aguda, essa sensação que te tira o chão, de ter que ir atrás de um processo judicial e burocrático. E com todas as incertezas dele, né?

A demora que se tem de se dar um laudo de incompatibilidade com a vida traz muito mais sofrimento para o casal, porque quanto mais avançado, mais complicado é o aborto. E mesmo depois de conseguir a aprovação do juiz, você talvez não consiga a maternidade para abortar. Em São Paulo, o hospital de referência em casos de gravidez avançada está proibido de fazer abortos, e com processos absolutamente injustos correndo contra as equipes médicas. Isso a gente está falando em São Paulo, então imagine nos interiores do Brasil.

AzMina: E sabemos que muitos juízes têm uma atuação antiaborto, que negam esses pedidos, independente da certeza de que o feto não vai sobreviver e do sofrimento que isso pode causar…

Eliza: Eu só consigo ver como misoginia. Eu já tentei dar outras explicações, mas isso é um lugar de ódio ao corpo feminino. A discussão sobre o aborto não é sobre a vida como os pró-vida colocam. Ela é sobre o ódio às mulheres, porque se fosse sobre a vida dos fetos, num caso de incompatibilidade com a vida, você quer fechar o laudo o mais rápido possível e fazer a interrupção para esse feto não sofrer.

Meu filho não sofreu. Não teve um segundo de dor, porque ele não tinha nenhum sistema nervoso formado para sentir dor. Para mim isso é pensar na vida do feto, na vida da pessoa. Esse debate evidencia que não é sobre o amor ao ser humano que está por vir, é sobre o ódio às mulheres que estão aqui.

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AzMina: Antes de ter feito um aborto, você já estava envolvida na luta por justiça reprodutiva?

Eliza: Eu cresci com o depoimento da minha mãe de um aborto clandestino que ela fez depois de ter tido eu e minhas duas irmãs. Era muito terrível imaginar minha mãe naquela situação. Ela fala do medo que ela tinha de a polícia chegar e dela ser largada, sedada e sangrando ali naquela maca. Ela já tinha três filhas, tinha medo de não voltar para casa. Só fui ver estatísticas sobre o aborto décadas depois, mas a minha mãe é exatamente o perfil de quem aborta: mulheres que já têm filho, sem condições de criar outros filhos, boa parte delas religiosa.

Eu sempre tive certeza que nunca ia abortar. Como eu cresci escutando o depoimento da minha mãe, eu sempre tive uma preocupação muito grande com métodos anticoncepcionais. Só tirei o DIU quando eu tinha certeza que era o momento de engravidar.

Aí vem uma grande transformação, que é entender, em primeira pessoa, que nem sempre a gente tem controle da situação do aborto. Eu diria que nunca a gente tem controle, que nenhum aborto é desejado. Ninguém quer abortar. Se você aborta é porque você está numa situação que você não tem condições de seguir com aquilo. E eu aprendi sobre essa complexidade ainda maior que é, muitas mulheres que desejam os filhos têm que abortar também. E como essa falta de política pública é cruel em vários níveis. É uma crueldade do Estado.

*O documentário Incompatível com a vida pode ser assistido na plataforma MUBI e no canal Curta. 

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