Na América Latina, onde se concentram as leis e os estigmas sociais mais rigorosos sobre a decisão de abortar, existem redes feministas que oferecem apoio, informação e cuidado a quem passa por essa escolha determinante em seu projeto de vida. As “acompanhantes de aborto”, “socorristas” ou “aborteiras” têm histórias de coragem, compaixão e luta por direitos reprodutivos. Muitas vezes desconhecidas, elas atuam sob a sombra das restrições e das regras morais discriminatórias, e permitem transformar as trajetórias de quem passa por uma gravidez indesejada.
Nesta reportagem, parte da série Aborto é Cuidado, uma parceria entre o Portal Catarinas, a Revista AzMina e a Gênero e Número, contamos como redes feministas de acompanhantes de aborto têm afetado positivamente a vida das pessoas que decidem abortar. Conversamos com ativistas do México, do Chile, da Argentina e do Brasil. Também destacamos iniciativas brasileiras que oferecem informações confiáveis sobre o procedimento.
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Pessoas comuns abortam todos os dias
Pessoas com possibilidade de engravidar sempre abortaram. Seja com ajuda de familiares, de uma pessoa conhecida na comunidade ou de completas estranhas, as orientações sobre métodos para “fazer a menstruação descer” sempre circularam e foram essenciais na vida de muitas mulheres, em vários contextos.
Não há um perfil específico de quem decide abortar, como revelado pela Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) 2021 no Brasil. Em toda a América Latina, pessoas de diferentes origens, religiões, idades, profissões, arranjos familiares e condições financeiras buscam ajuda nas redes de acompanhamento feminista.
“Eu sempre sonhei em ser mãe. Quando tive minha filha, não poderia estar mais realizada. Mas uma segunda gravidez, com um bebê de seis meses para criar, é impossível. Estou sozinha e não tenho condições financeiras. É uma decisão muito difícil, mas é pensando na minha filha que preciso de vocês”, relatou Marlene*, 38 anos, freelancer, a uma acompanhante.
Redes e coletivas de acompanhamento feminista
Com o avanço das tecnologias médicas, farmacêuticas e de comunicação, o apoio a pessoas que decidem abortar tomou outra dimensão. Embora ainda envolto em silêncio há muitas coletivas e redes de ativistas feministas que têm realizado esse trabalho de forma pública, transformando os sentidos e sentires sobre o aborto.
A Red Compañera, que articula mais de 21 grupos de 15 países da América Latina, incluindo Uruguai, Equador, Peru, Bolívia, México, Panamá, República Dominicana, entre outros, completa cinco anos em 2023. Guiada por uma ética feminista e de justiça social, a rede promove a autonomia de quem decide abortar, tendo como horizonte o aborto livre por meio de conhecimentos e saberes que disputam com a medicina hegemônica colonial.
Uma das redes que fazem parte da Red Compañera, mas que existe e atua territorialmente desde 2012, é a Socorristas en Red, da Argentina. Composta por 49 coletivas de todas as partes do país, nos últimos cinco anos acompanharam, em média, 13,5 mil pessoas por ano – sendo o pico de mais de 17,5 mil em 2020, ano da pandemia de Covid-19 e da aprovação da Lei 27.610, que legalizou o aborto voluntário na Argentina.
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Apesar da legalização do aborto, dados das Socorristas en Red mostram que, com exceção de 2020, primeiro ano da pandemia, a taxa de procedimentos realizados no sistema de saúde não vem crescendo desde então. Em 2022, apenas 10% das pessoas acompanhadas pelas Socorristas realizaram seus abortos nos serviços de saúde.
“Nossa aposta como Socorristas en Red é o aborto livre, que a pessoa decida quando, onde, com quem. O queremos legal, mas, também, o queremos livre e feminista”, declara, ao Catarinas, Nadia Judith Mamaní, 34 anos, docente de educação primária e ativista da coletiva La Revuelta.
Outra rede vinculada à Red Compañera é Con las Amigas y en La Casa, do Chile. Criada em 2016 e composta por cerca de 13 coletivas localizadas do extremo sul ao extremo norte do país, as acompanhantes já orientaram mais de 50 mil mulheres e crianças em seus abortos.
“A diferença de fazê-lo através da rede é poder fazer publicamente, tornar o aborto mais do que um ato particular privado, mas algo coletivo e cotidiano”, conta Carolina Cisternas, ativista de Con las Amigas y en La Casa.
Acompanhamento: um ato de ternura e cuidado
Contrariando estereótipos, as emoções relacionadas ao aborto não se limitam ao medo, desespero e culpa. Quando as pessoas têm acesso a informações e protocolos seguros, os relatos são de acolhimento, cuidado, alívio e felicidade. Tomar a decisão com apoio e sem julgamento é crucial nesse evento reprodutivo comum a quem gesta. O apoio de uma feminista pode fazer toda a diferença.
“O acompanhamento de aborto é também um ato de ternura, um ato revolucionário, para fomentar a coletividade diante dessa individualidade que se promove tanto”, afirma Angélica Medina García, 39 anos, psicoterapeuta, mestra em Estudos Socioculturais e acompanhante de abortos na coletiva Las Centinelas, de Mexicali, México.
Na conversa inicial, que geralmente ocorre por mensagens de aplicativos de celular, se busca compreender o contexto da pessoa, o que essa decisão significa para si, seu futuro e de sua família. Essa conversa permite identificar situações de violência, de abandono ou de vulnerabilidade social.
“Isso acaba sendo mais importante do que o próprio processo físico em si, porque o procedimento é simples. Então, temos a preocupação de manejar essas outras situações, sobretudo no Brasil, onde há questões de segurança para evitar criminalização”, explica Liz*, uma acompanhante feminista brasileira.
As redes ou coletivas públicas que atuam onde não são criminalizadas – como Argentina, México, Uruguai e Colômbia – têm linhas telefônicas dedicadas ao acolhimento, além de e-mails, sites e perfis em redes sociais. Já no Brasil, as acompanhantes são invisíveis publicamente.
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O acompanhamento também envolve explicar questões de saúde, protocolo utilizado (medicamentoso), além dos cuidados em segurança. Quando se reconhece que a pessoa se encaixa em alguma situação em que o aborto é legal – inviabilidade fetal (no Chile) ou anencefalia fetal (no Brasil), risco à vida e estupro -, recomenda-se a busca de um serviço de saúde, exigindo o cumprimento da lei.
Já nas demais situações ou quando a pessoa não quer ir ao serviço de saúde, as ativistas seguem o acompanhamento, geralmente pedindo um exame de ultrassom transvaginal para confirmar a idade gestacional e orientar o melhor protocolo.
Há, também, as redes, como Socorristas en Red e Con Las Amigas y en la Casa, que têm como prática fazer encontros presenciais coletivos com as acompanhadas. Os “talleres”, como são conhecidos, buscam romper o silêncio e criar um vínculo de confiança.
“Embora tenhamos aprendido, com a pandemia, que é possível fazer muitas coisas de modo virtual, nosso fundamento é que o acompanhamento se faz cara a cara”, relata Carolina Cisternas, da rede chilena.
Já as Socorristas aproveitam o encontro para repassar informações sobre a Lei de Interrupção Voluntária da Gestação (IVE, na sigla em espanhol), os tipos de procedimento, sintomas e sinais de alerta. Os contatos seguem com acompanhamento virtual.
“Algumas chegam preocupadas, por não saber aonde ir, se vão ser acolhidas, com incertezas e muita angústia, especialmente aquelas que já tiveram experiências negativas ou que caíram em grupos antidireitos que mostraram vídeos horríveis para convencê-las a não abortar. E saem com cara de alívio, pois descobrem como buscar os serviços de saúde e que vamos seguir com elas até o controle pós-aborto”, explica Nadia Judith Mamaní, das Socorristas en Red.
Acesso à medicação
O acompanhamento também envolve ajudar no acesso aos medicamentos seguros e eficazes, além de estar disponível durante todo o processo de aborto, virtual ou presencialmente, a depender da idade gestacional, da condição e da necessidade da pessoa.
Na Argentina, misoprostol e mifepristona são acessíveis gratuitamente em serviços de saúde ou mediante receita médica nas farmácias. No México, o misoprostol é vendido sem necessidade de receita. Organizações internacionais apoiam redes fornecendo medicação, especialmente a mifepristona, dependendo do país.
No Chile, misoprostol e mifepristona são de uso exclusivo em hospitais, assim como no Brasil. No entanto, aqui, a mifepristona não é regulamentada e a comercialização do misoprostol é criminalizada com penas mais severas que o próprio aborto.
“Vocês salvaram a minha vida”
Ao fim dos acompanhamentos, quem abortou geralmente demonstra alívio e gratidão, segundo as experiências das acompanhantes. “É comum que elas digam coisas como: ‘vocês me ajudaram sem nem me conhecer! Nem sei o que eu teria feito se eu não tivesse encontrado vocês!’, ou ‘Vocês são anjos, salvaram a minha vida’”, conta Liz*, acompanhante feminista brasileira.
Carolina Cisternas, de Con las Amigas, destaca que, enquanto algumas mulheres chegam decididas, por já conhecerem a rede, muitas ainda têm medo devido a experiências negativas, incluindo golpes online. “Fazemos com que elas se sintam acolhidas, e não julgadas. Assim, elas se vão muito felizes, relaxadas, confortáveis e dispostas a viver suas vidas como querem viver”, relata.
A transformação do medo em alívio só ocorre porque, entre as ativistas, há comprometimento, empatia e respeito pela autonomia e dignidade da outra pessoa.
“Ser acompanhante feminista é fazê-lo com amor, consciência de que, ao abortar, abortamos culpas, o patriarcado, o capitalismo. É estar consciente da força que têm a coletividade e as mulheres quando estamos decididas a reconhecer nossa capacidade de empoderar nossa corpa”, diz Angélica Medina García, de Las Centinelas.
Para Carolina Cisternas, de Con Las Amigas, acompanhar abortos envolve romper com parâmetros patriarcais de competição e desconfiança entre mulheres, e colocar em primeiro lugar uma relação com uma desconhecida, reconhecendo que, juntas, estão fazendo algo que pode mudar a vida da outra pessoa. “E, claro, muda a nossa vida todos os dias”.
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Acompanhar também pode ressignificar uma experiência negativa. “Minha primeira motivação foi conhecer a informação que eu tive necessidade de ter. A segunda foi ser alguém que eu gostaria de ter tido comigo durante o meu procedimento”, lembra Nadia, das Socorristas en Red.
Colocar-se disponível a outra pessoa pelo tempo necessário e arriscar-se faz parte do acompanhamento feminista. “Você se levanta com o celular na mão e vai dormir com ele. É preciso estar sempre conectada, sobretudo durante o procedimento. O dia a dia é intenso, pesado, mas, também, gratificante por entender que podemos ter a saúde em nossas mãos”, explicou Carolina, de Con las Amigas.
Redução de danos de abortos clandestinos
No Brasil, onde as redes não podem atuar publicamente, é tarefa desafiadora encontrar acompanhantes feministas. Mas há iniciativas públicas que ajudam quem necessita de informações seguras.
Mas a busca na internet pode levar tanto a páginas confiáveis quanto a armadilhas que exploram pessoas desesperadas com remédios falsos. Se a oferta dos medicamentos é feita de maneira explícita nas redes e grupos de aplicativos, não é bom sinal. Será que alguém com credibilidade arriscaria ser preso dessa maneira na internet? A resposta é: não. Isso provavelmente é um golpe.
Entre os sites confiáveis, está o da organização Safe2Choose (Segura para Decidir, em tradução livre). A plataforma oferece informações sobre aborto seguro e possui conselheiras online para tirar dúvidas em vários idiomas.
Além da Safe2Choose, os canais “Vera”, criado em 2017 pelo Grupo Curumim, e “Eu cuido, eu decido”, criado em 2020 pelo Projeto Cravinas – Clínica de Direitos Sexuais e Reprodutivos da UnB, disponibilizam números de telefone que funcionam por mensagens no Whatsapp. Para fazer contato, basta mandar um “olá” para (81) 98580-7506 (Vera) ou (61) 99208-6523 (Eu cuido, eu Decido) para receber o menu com orientações de como navegar pelo canal.
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Informação segura
O Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde (CFSS), ativo desde os anos 1980, inicialmente focado na saúde das mulheres, passou a oferecer atendimento primário a todas as pessoas, independentemente do gênero, em São Paulo. Em 2014, o ambulatório introduziu o “acolhimento de gravidez indesejada” para fornecer um espaço seguro e sem julgamentos. Entre 2019 e 2023, foram realizados cerca de 125 acolhimentos anuais.
Uma pergunta crucial feita no consultório é: “essa gestação é desejada?”. Isso ajuda a entender a natureza da gravidez e garantir que as pessoas conheçam seus direitos.
Além disso, o CFSS realiza formações sobre acolhimento de gestações indesejadas e aborto seguro para profissionais de saúde e estudantes da área médica. Em 2023, irão capacitar quase 300 profissionais de Unidades Básicas de Saúde de São Paulo, entre agentes comunitários, técnicos, enfermeiros, médicos e psicólogos.
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Como explica Luiza Cadioli, médica de família e comunidade que atua no Coletivo, o objetivo é reduzir danos compartilhando informações baseadas em evidências científicas e cumprindo um compromisso ético com a saúde.
“Na maioria das vezes as pessoas voltam aliviadas e querendo pensar em contracepção. Os casos mais traumáticos, normalmente, são os que não foram orientados, que chegam após tentativas inseguras”, compartilha a médica.
*Nomes fictícios.
Esta reportagem recebeu apoio da iniciativa Futuro do Cuidado.