Leia capítulo do livro “Os Meninos São a Cura do Machismo”, de Nana Queiroz, que chega este mês nas livrarias .
Até o século 17, no mundo ocidental, o sexo era uma prática muito mais livre do corpo. Não havia tantas regras sobre como poderia ser praticado e com quem. Em seu trabalho sobre a história da sexualidade, Michel Foucault afirma que as limitações do prazer surgiram com uma finalidade bem específica: aumentar a eficiência de um sistema de produção que começava a se delinear. “Se o sexo é tão rigorosamente reprimido, é porque ele é incompatível com um imperativo de trabalho geral e intenso.” É um discurso que evolui conforme avança a revolução industrial (aproximadamente entre 1760 e 1840).
A evolução da moral sexual nesse período é muito reveladora. É interessante para o novo sistema que as mulheres permaneçam em casa, nutrindo e criando a nova força de trabalho — e educando-a conforme um código de conduta bem controlado —, enquanto aos homens sejam dadas algumas concessões. Nós, mulheres, precisamos estar convencidas da ética dessa sociedade para passá-la adiante, precisamos ensiná-la, inclusive, através do exemplo, somos suas reprodutoras morais. Para eles, são criados locais de tolerância, como os bordéis. Os homens repõem a força de trabalho necessária para cargos de prestígio, com seus filhos legítimos, e para subempregos, com seus bastardos.
A pergunta-chave aqui é: por que a humanidade aceitaria passivamente o confinamento de sua sexualidade senão porque encontrava nisso algum tipo de vantagem? E a vantagem, diz Foucault, foi encontrar no proibido do sexo uma maneira fácil de rebelar-se contra os novos poderes que a oprimiam.
Se o sexo é reprimido, isto é, condenado à proibição, à não existência e ao silêncio, o mero fato de falar sobre sexo tem a aparência de deliberada transgressão. Uma pessoa que toma posse dessa linguagem se coloca, em certa medida, fora do alcance do poder.
Os homens estão, então, massacrados por uma jornada de trabalho extensa. Não têm espaço emocional para extravasar o medo de perderem o emprego — por risco de perderem, com ele, sua própria identidade e verem sua família morrer de fome. No escape sexual, encontram uma eventual catarse. Se estão com raiva, podem descontá-la em prostitutas, que são, afinal,”menos humanas”. Se estão ressentidos dos patrões, negam sua moralidade e declaram-se livres em algum reino de sua existência. E, assim, encontram forças para continuar servindo ao sistema.
A violência e o sexo são vazão para a opressão da masculinidade tóxica.
A necessidade de transgressão, porém, escala conforme o homem faz uso do “proibido”. O próprio conceito de proibido ganha fronteiras mais e mais extensas. O sexo não basta mais, é preciso o fetiche. Na periferia da sexualidade oficialmente permitida começa a existir, também, uma glamourização da violência sexual.
Não é à toa que, no auge da era capitalista, vemos o desenvolvimento de um pornô agressivo e que, por tantas vezes, imita o estupro. A indústria do pornô se alimenta do tabu sexual. O mesmo acontece com a cultura do estupro — que não quer dizer que todos os homens sejam estupradores, mas que a sociedade em geral é cúmplice por criar uma atmosfera em que o estupro é naturalizado e até justificado.
A saída para esse impasse é desfazer a premissa sobre a fonte do prazer. O tabu sexual centrou o prazer máximo na transgressão de regras sociais. Precisamos convencer os homens de que o verdadeiro deleite, porém, não está aí, mas na troca de prazeres. Fazer do sexo uma experiência de dois indivíduos cujos corpos se conectam é o caminho para a libertação da sexualidade masculina (e feminina heterossexual, em consequência). É um caminho em que não existem objetos sexuais, mas indivíduos sexuais com vontades a serem respeitadas e satisfeitas. E não falo aqui só do sexo-amor — falo do sexo troca, mesmo que casual.
Quebrar o tabu sobre o sexo, nesse sentido, seria um exercício de combate à violência sexual, substituindo a busca da transgressão por um prazer que se acentua quando se percebe como o corpo não só é capaz de ter prazer, mas de dar prazer. E deliciar-se nessa potência dupla.
Nas rodas mistas de homens e mulheres de que participei ou que mediei, é latente a necessidade de acessar esses assuntos interditos. O sexo é o tema mais comum trazido espontaneamente. Os homens de diversas faixas etárias que frequentam esses espaços seguros mostram uma carência desesperada em debater a própria sexualidade e como ela, de forma opressora, parece descrever suas identidades. Eles querem se libertar disso, querem ser reconhecidos para além de como, com quem ou com que frequência ou vigor praticam o sexo.
Disfunção erétil e ejaculação precoce são, comumente, relatados como fruto de uma pressão por potência com a qual eles não sabem lidar. E seu desejo anda tão regulado e confinado que cada deslize de pensamento é entendido como uma condenação máxima ao mundo da homossexualidade e, com isso, a sofrer as consequências da homofobia. É impressionante como homens heterossexuais têm medo da simples admissão de que outro homem é belo. Não me surpreende que no Japão, por exemplo, os rostos e as genitais dos atores pornôs sejam borrados — não queremos que eles também poluam o imaginário sexual dos meninos. Vale lembrar que isso ocorre num país que até comercializa legalmente brinquedos sexuais e produtos culturais de fantasias sexuais com crianças. O moralismo japonês tolera até o desejo do pedófilo, mas não dá trégua ao desejo homoerótico.
Está estampado no rosto o alívio de alguns dos participantes quando um homem heterossexual corajoso admite que já sentiu, uma vez ou duas, desejo por outro homem — uma admissão que é perfeitamente natural entre muitas mulheres heterossexuais. Pois a nós é permitido entender que a sexualidade é um espectro no qual, eventualmente, viajam cores distintas. Aos homens só é permitido desejar em preto e branco. Hétero ou gay. Uma camisa de força bastante limitadora e que, inevitavelmente, trará inseguranças e confusões, já que nós, seres humanos, também passeamos pela androginia. A expressão da beleza e das identidades viaja por uma escala de muitas medidas em que masculino e feminino são apenas extremos. Entre o macho alfa e a mulher “ultrafeminina” moram as mulheres “tomboy”, as travestis, os e as transexuais, os homens afeminados, as pessoas não binárias e uma infinidade de almas a serem amadas e corpos a serem desejados.
É também muito claro como a falta de inteligência emocional acentua esse sofrimento masculino. Como são criados para reprimir cada expressão de afeto menos uma, o sexo, os homens comumente confundem seus amores não românticos com desejos sexuais. Depois que comecei a mediar essas rodas de conversa, acolhimento e aprendizado coletivo, ficou muito claro para mim por que tantos de meus melhores amigos homens disseram-se apaixonados por mim, mesmo que fosse claro para mim que nossa linda e profunda relação não tivesse uma gota sequer de potência sexual.
Mas para homens moldados na fôrma da masculinidade tóxica, a única maneira de expressar afetos é através do sexo. Não se pode chorar, declarar amor de forma sensível demais. Mas transar pode. DEVE. É no encontro sexual que os homens descobrem sua única vulnerabilidade permitida. A busca desesperada por sexo a todo custo é, também, uma busca para mascarar o vazio afetivo angustiante em que eles se encontram.
Esses meus amigos ansiavam por meu carinho, me amavam e eram amados de volta. Porém, se não havia afeto possível fora do sexo, nossa relação precisava envolver sexo. Era a única explicação que estava disponível para eles.
Oscar, um dos participantes de minha pesquisa, segredou o incômodo: “Sempre tive, majoritariamente, mulheres como amigas íntimas. Mas sempre era cobrado que me relacionasse com elas de maneira amorosa-sexual.”
Isso explica por que tantos homens acabam se casando com suas melhores amigas e, em muito pouco tempo dentro da relação, descobrem não ter muito interesse sexual por elas. Além de condenar ambos à infelicidade de um relacionamento em que falta um pilar, essa prática reforça o binômio santas e putas, já que a esposa é “para casar”, mas não serve “para trepar”.
É curioso como a repressão e a sexualidade compulsória convivem na maneira como criamos nossos meninos. Homens têm que manifestar uma sexualidade extrema — mas muito bem aprisionada dentro de certas fronteiras. E essas fronteiras são, normalmente, decretadas com o uso de violência física ou emocional. Os que se negam a se enquadrar se tornam párias sociais, como Manuel:
“Na adolescência, eu não era pegador. Esperava um encontro romântico como os das novelas a que sempre assistia. Andava com as garotas para saber o que elas pensavam. Era mais inteligente que os garotos do bairro e chorava com mais frequência. Resultado: nunca fui a uma festa antes dos meus 18 anos, pois nunca fui convidado. Os garotos me chamavam de veado, pois não bebia e não queria pegar ninguém sem objetivo. As meninas me chamavam de veado porque não queria ficar com alguém sem objetivo. Meu pai me chamava de veado porque não saía de casa e não tinha amigos. Minha mãe insistia — forçava, às vezes — que eu saísse para uma festa para conhecer garotas, uma maneira de me obrigar a não ser veado. Fui socialmente excluído até ter uma namorada”.
Sob o disfarce de um desejo sexual insaciável, na verdade, mora, em muitos homens, uma fome insatisfeita de troca, de amor e de aceitação.
Entre meus entrevistados, por exemplo, 66% gostariam de fazer sexo, no máximo, duas vezes por semana. A maioria, 45%, gostaria de transar uma ou duas vezes por semana — ao contrário do mito do homem que praticaria sexo todos os dias se possível. Ressalto que mais da metade dos meus entrevistados tinha menos do que 35 anos e vivia o ápice biológico de sua sexualidade.
Só 20% deles disseram nunca ter tido dificuldades de performance sexual, como ejaculação precoce ou disfunção erétil. Quando perguntei se sabiam o motivo das “falhas”, muitos responderam que se deviam ao consumo excessivo de pornografia, álcool, nervosismo ou ao fato de, simplesmente, não estarem com vontade de transar naquele momento, mas não se sentirem livres para dizer não. O sexo, para o homem, é sempre compulsório. E isso, por si só, já é uma violência sexual.
Outro motivo inesperado foi a insegurança estética. Sempre imaginei que somente mulheres tivessem esses problemas de autoimagem acentuados, por serem tão expostas à moda e à publicidade, que prega um padrão de beleza irreal. Mas não. Entre homens que faziam parte de minorias, aliás, a insegurança era ainda mais severa, como contam Rafael, Eduardo e Adam.
“Existe uma cultura de estética corporal bem-definida com músculos e aparência de academia na qual não me enquadro muito. A baixa autoestima prejudica outras partes da minha vida e isso incomoda bastante. Não se sentir bem com o próprio corpo pode trazer dores que impedem que oportunidades sejam vividas e desenvolvidas de forma natural. Ninguém deveria se sentir feio ou desinteressante. Sei que tenho traumas por ser uma pessoa negra, ter crescido com pouca representatividade e viver numa sociedade machista que coloca o homem gay como sendo inferior a todo momento. Estou aprendendo, aos 31, como reconhecer minha beleza para mim, algo que deveria e poderia ser um processo muito natural e tranquilo, se nossa cultura fosse menos machista, racista e homofóbica”.
“Eu sou cego, e uma parcela muito grande da sociedade não me percebe como uma pessoa completa. Não sou visto sequer como um possível parceiro sexual”.
“Sendo negro e “bem dotado”, eu me via como uma máquina de sexo, entretanto agora percebo que nem ligo tanto assim para sexo…”
O consumo de drogas e álcool também apareceu intimamente entrelaçado à vida sexual de homens jovens, como uma maneira de contornar o nervosismo causado pela obrigação de uma superperformance ou para camuflar a própria falta de desejo.
A receita é desastrosa: iniciação sexual precoce e violenta; uma educação sexual cheia de tabus discursivos que acaba precariamente substituída por filmes pornôs agressivos; a ideia de que os homens têm algum direito intrínseco ao sexo; a convicção de que o imperativo e a violência sexual fazem parte da “natureza masculina”; repressão das emoções e da capacidade de sentir empatia; desumanização da mulher como “outro”. Assim construímos uma cultura do estupro.
Precisamos criar, para nossos meninos, uma sexualidade que liberta, em vez de aprisionar. Uma sexualidade que conecta, em vez de usar. Uma sexualidade que acolhe as complexidades humanas, em vez de reprimi-las. E isso acontecerá aliando o ensino de inteligência emocional a uma educação sexual sem discursos tabus e adequada para cada nível de maturidade de crianças e adolescentes. Uma educação cujo currículo tem que, obrigatoriamente, incluir lições sobre o consentimento e suas nuances. Só assim vamos escrever um capítulo do qual nos orgulhamos na história da sexualidade humana.