Em 2020, comemoramos 25 anos da Plataforma de Ação de Pequim aprovada na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, de 1995, da Organização das Nações Unidas (ONU). Este documento estabelece doze pontos para promoção da igualdade de gênero. Entre eles, a dificuldade do acesso a serviços públicos, principalmente de saúde e enfrentamento à violência contra as mulheres, e a sub-representatividade nos processos de tomada de decisão política.
Neste ano, quando deveríamos estar avaliando celebrando os avanços dos últimos 25 anos, estamos – ao contrário – contabilizando retrocessos no Brasil. Dois graves acontecimentos nas políticas públicas para mulheres e meninas são emblemáticos nesse sentido.
O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) lançou, em 3 de fevereiro de 2020, uma campanha de combate à gravidez precoce para adiar a iniciação sexual, propondo abstinência. Dois dias depois, o presidente Jair Bolsonaro declarou que não é necessário dinheiro para se erradicar a violência contra as mulheres, bastaria uma “mudança de postura”, logo após sinalizar que não reforçaria políticas específicas de enfrentamento.
Somente nesses dois dias, o governo federal tomou decisões e fez declarações públicas que ignoram os princípios estabelecidos em Pequim por diversos países, inclusive o Brasil, e diferentes especialistas e setores, que são globalmente reconhecidos como fundamentais para a gestão pública e o enfrentamento à desigualdade de gênero. Os episódios são emblemáticos também em relação a parâmetros nacionais e internacionais em outros campos da gestão pública: os da transparência e da participação social.
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No campo do acesso à informação, as declarações não são embasadas por evidências e dados públicos – pelo contrário, enfrentamos outro problema nessa frente diante da ausência e mesmo na retirada do ar de informações oficiais antes disponíveis sobre políticas federais com foco em gênero desde janeiro de 2019.
Se por um lado não há transparência, por outro, as decisões de uso orçamentário em campanhas como a da iniciação sexual tardia também são resultado da crescente restrição de espaços e mecanismos de participação social na construção de políticas públicas para mulheres. É feita sem debate e sem levar em consideração as diferentes realidades vividas pelas mulheres no Brasil.
O que as evidências dizem
Apesar de basear-se em dados para a construção da campanha #TudoTemSeuTempo, com custo de R$ 3,5 milhões aos cofres públicos, o MMFDH não divulgou quais são esses dados ou estudos realizados. Em contrapartida, pesquisas produzidas por instituições da sociedade civil a partir dos dados disponíveis sobre a realidade das meninas gestantes do Brasil apontam para um cenário preocupante.
Segundo o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2018, 53,4% das mulheres e meninas vítimas de estupro no Brasil tinham até 13 anos – considerando as adolescentes em idade escolar (até 17 anos) esse número sobe para 72%. Ainda, um estudo conduzido em 2017 mostra que dentre as 31.611 meninas que engravidaram, e levaram adiante a gestação, entre 2011 e 2015, 1273 foram vítimas de estupro – um número preocupante, considerando a já esperada subnotificação do crime de estupro de vulnerável.
Uma campanha com foco comportamental e moralizador para crianças e adolescentes vulnerabiliza e coloca a responsabilidade de prevenção da gestação em meninas — que, inclusive, são muitas vezes vítimas de violência sexual. Esse foco contraria a noção de políticas públicas baseadas em evidências, de assim as previsões estipuladas raramente se cumprem e os riscos não são avaliados, nem mitigados. A transparência das ações também fica prejudicada, pois não existem indicadores ‘morais’ para a prestação de contas.
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A campanha é atravessada por lacunas sérias: não possui nenhuma informação sobre quais são os melhores métodos contraceptivos para mulheres e meninas em diferentes idades, quais são os procedimentos realizáveis no SUS e quais hospitais realizam a interrupção legal da gravidez. Além de não estarem na campanha, a Artigo 19 já atestou, em diferentes momentos, que essas são informações ausentes nos principais meios de divulgação de informações dos órgãos de saúde .
Enquanto isso, os problemas estruturais que geram índices alarmantes de violência ou a precariedade da rede de serviços que seria acionada em caso de violência sexual contra crianças e meninas, não são enfrentados com políticas públicas adequadas. E assistimos a um presidente reduzir uma grave questão de direitos humanos ao plano do comportamento individual.
De igual maneira, a declaração de Jair Bolsonaro sobre a falta de recursos para o atendimento a mulheres em situação de violência também tem pouco respaldo na realidade e parece ignorar a forma com a qual as políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres são construídas no Brasil.Há décadas o trabalho multidisciplinar e uma rede de serviços que envolvem orçamento, profissionais e recursos no campo da segurança, justiça, saúde e psicossocial são acionados nessas políticas.
Um levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo aponta que, entre 2015 e 2019, os recursos destinados ao atendimento dessas mulheres recuou de R$ 34,7 milhões para R$ 194,7 mil. Em contrapartida, em 2018, o Ministério da Saúde registrou 145 mil casos de violência contra as mulheres – em média uma agressão a cada 4 minutos, um número que não para de crescer.
A combinação entre uma política focada no comportamento, na moralização e no recuo de investimentos não só impede a manutenção de programas que têm funcionado, ainda que aquém do necessário, para o enfrentamento à violência contra as mulheres, como também deixa vítimas mais vulneráveis sem possibilidade de acolhimento em serviços públicos. A violência contra as mulheres tem base estrutural e deve ser combatida materialmente, não pode ser reduzida a uma questão moral ou de costumes.
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Quando políticas públicas não são baseadas em evidências e não há transparência, nem processos participativos, mas sim reduzidas a recomendações comportamentais, sua fiscalização e a mensuração dos seus impactos é fragilizada. Isso também significa que um número menor de pessoas poderá, de fato, contribuir para a gestão pública do país de maneira democrática, monitorando e avaliando políticas públicas ou até mesmo propondo soluções nos fóruns coletivos de construção de políticas. Ou seja, a perda de eficácia. Vale lembrar que a construção de políticas públicas pouco transparentes também são meios para o desvio de dinheiro público e a corrupção.
Quais seriam soluções eficazes para facilitar o acesso de mulheres e meninas ao direito à saúde sexual e reprodutiva e a uma vida livre de violência? Além da construção de políticas públicas consistentes e baseadas em evidências, é necessário que haja a produção de informações úteis amplamente divulgadas, incluindo aquelas que orientam sobre quais são os direitos das mulheres e onde buscar sua efetivação.
Mantidas as atuais circunstâncias, testemunhamos que os equipamentos e recursos públicos, além de encolherem, são mobilizados em decisões fundamentadas nas crenças e morais individuais de determinados representantes públicos. Além de grave, esse cenário contraria o que tem funcionado não só no Brasil, como no mundo em termos de garantir às mulheres seus direitos sexuais e reprodutivos e a uma vida livre de violência. Sabemos que o retrocesso é grande quando a defesa pela sociedade civil de princípios pactuados há 25 anos se faz mais necessária do que nunca.
Sobre as autoras:
Júlia Rocha é assessora de projetos no programa de Acesso à Informação da Artigo 19. Bacharela em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo, atualmente cursa especialização em Sociologia na Fundação Escola de Sociologia e Política. Possui experiência nas áreas de direitos humanos, gênero, transparência, governo aberto, políticas públicas, jornalismo e gestão de projetos.
Joara Marchezini é coordenadora no programa de Acesso à Informação da Artigo 19. Em 2012, concluiu o Máster Europeu em Acción Internacional Humanitaria pela Universidad de Deusto, na Espanha. Possui pós-graduação em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade de Coimbra, em Portugal, e graduação em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).