[fusion_text]Hoje o divã é da Camila de Lira
Ilustração: Larissa Ribeiro
D izem que o pior do estado depressivo não é a tristeza, mas quando ela desaparece. Foi isso que eu senti, por muito tempo, com relação ao meu corpo: não era ódio, era uma total e completa apatia. Como se ele não estivesse ali. E quando falo em corpo, para deixar claro, quero dizer peitos, bunda, quadril, cintura, pernas e braços.
Sentia que o meu corpo “não importava”, que não queria ele ali. Para mim, uma coisa era certa, esse corpo não se encaixava. Ele não era adequado. Nenhuma amiga, familiar ou personagens de filme (nem mesmo a “gorda” Bridget Jones é gorda no filme) tinham um formato de corpo remotamente parecido com o meu.
Olhava para mim mesma no espelho ou em fotos bastante raramente. E quando olhava, o que encontrava era tão surpreendentemente ruim, que me fechava, bloqueava os sentimentos e fazia o que fiz com maestria por muito tempo da minha vida: fingia que o lado negativo não estava ali.
Muitos viam nisso uma atitude descolada, desencanada. Já escutei de muita gente que queriam ser como eu, que “não tinha neuras com o corpo”, apenas porque não falava em fazer dietas malucas e-ou me matar na academia próxima depois de comer uma batata frita. Sem querer, elas deixavam escapar um pensamento clássico com gordos que é daquele tipo de “se até ela, gorda, pode, imagina eu?”. Mal sabiam elas dos pensamentos de dor e ódio que se passavam na minha cabeça quando falavam do meu corpo, até quando elogiavam. A minha sensação básica era: esse corpo não é meu.
E entra aí mais um ponto complexo que, em nenhum momento me ajudou:o discurso de amigos e familiares com relação ao corpo gordo. Nunca com relação ao MEU corpo gordo, mas ao corpo gordo em geral, “de outras pessoas”. Quando eu tornava a situação particular, as pessoas ficavam sem graça e falam “mas não estava falando de você, você nem é gorda”. Magina, uso calça 48, sutiã 52, colega, acho que quando você fala de gorda, também fala de mim.
Cada vez que escutava o pânico na voz de uma amiga ou familiar – muito mais magras que eu – ao falarem que engordaram, ficava chateada. Esse tipo de discurso me machucou muito mais do que o discurso vigente da mídia, que exclui o corpo gordo de suas pautas. As pessoas não percebiam que ficava chateada. Mas, na minha cabeça, ficava triste, muito triste, ao perceber que um dos maiores medos – senão o maior – delas era ter um corpo gordo igual ao meu. Elas preferiam morrer a serem gordas, já escutei essa frase. Ou “Nossa, to enorme de gorda. To obesa”, saído, com nojo, das bocas das pessoas mais magras que conheço. Aprendi, assim, a ter nojo também do meu corpo. A sensação de peixe fora d’água só aumentava.
Comprar roupas, então? Uso numeração 48 – já passei pela 50 – desde os 18 anos de idade, na adolescência usava 44-46. Sempre comprei roupas em lojas de departamento e a frustração por não encontrar roupas que tivessem a minha cara com o meu tamanho só não era maior do que a resposta ‘cínica=-eu-só-quero-o-seu-bem’ da minha mãe: “não entendo porque você fica nervosa quando a gente vem comprar roupa. Emagrece da próxima vez, ué?”. Era eu que estava errada, entendem? O meu corpo gordo que estava errado em não caber naquelas profusões de calças 36-38. Se eu reclamasse, estava sendo “preguiçosa”. Já escutei da minha mãe isso: “também fazer exercicio, fechar a boca para emagrecer não quer. não adianda ficar chorando no provador”. O gordo que não emagrece é visto como uma pária. O cara sem força de vontade, pois tem tantas histórias de exemplos de pessoas que perderam 30 kg, 40 kg, 50 kg, em um ano, por quê você não pode fazer o mesmo? O que falta para você para fazer o mesmo, Camila?
Eis da onde veio a apatia. O que me manteve funcional como pessoa – e como pessoa extrovertida, gosto de adicionar isso, nunca fui introvertida na minha vida – foi o meu lado intelectual. Ele agiu como quando o olho bom se força a fazer o trabalho inteiro da visão quando o outro olho está doente, com miopia. O intelectual me ajudou até onde podia. Até tudo colidir e eu sofrer bullying de colegas de curso na faculdade.
Fiz jornalismo na USP, como a criadora da revista e muitas outras repórteres daqui, a ECA foi meu acalento. Lá foi o primeiro lugar em que me senti incluída, em que meu corpo não parecia importar, apenas o meu lado intelectual. Fiz amigos, falávamos sobre tudo, menos sobre emagrecer, dietas e afins, o que me deixava muito feliz.
Só que o lado intelectual não bastava, umas garotas do meu ano fizeram questão de jogar isso na minha cara durante um JUCA – Jogos Universitários de Comunicações e Artes. Elas, magras, apontavam para mim, riam do meu corpo e faziam cantilenas toda vez que passava do lado delas. “Só na ECA tem Susan Boyle”, diziam E riam, riam. E os outros riam também, talvez não sabendo que a canção era para mim. Não soube reagir. Era a primeira vez que algo do tipo me acontecia. Nem no colegial ou na escola, o inferno de muitos gordos, sofri bullying. É engraçado pensar que muitas garotas da Atlética se diziam feministas, mas nada fizeram. Parei de ir em jogos e eventos universitários, toda vez que via essas garotas no corredor da faculdade eu tremia e suava frio, com medo de que as cantilenas começassem de novo. E que eu, de novo, não pudesse me defender. Nesse momento, amigas, a apatia se tornou ódio. Muito ódio.
Odiava tudo que meu corpo tinha e apresentava, absolutamente tudo. Achava-o horroroso. E, o interessante é que o ódio se juntou ao pessimismo, e ambos eram tão fortes, que não acreditava que poderia mudar o meu corpo. Nessa época não fazia exercícios por pura vergonha: “o que os outros vão achar de uma gorda toda suada?”. Achava o meu corpo tão horroroso que não o achava capaz de mudar. Só queria ser outra pessoa. E quando falava de alguma insegurança sobre meu corpo para minhas melhores amigas, a resposta era a mesma: “por que você não tenta emagrecer? tem um rosto tão bonito”.
Esse ciclo negativo e auto-destrutivo começou a ser revertido e a ser desconstruído quando uma amiga com um corpo parecido com o meu veio dividir apartamento comigo e com as outras meninas. Vê-la com vestidos lindos (sério , Mirela, me dê seu guarda-roupa!) e escutá-la falando sobre complexos que eu também tinha me fez perceber que eu não estava sozinha no mundo. Foi um pequeno passo, mas a porta para a estrada do autoconhecimento e da autoaceitação estava aberta.
Comecei a ir atrás do movimento “plus size”, comecei a ir atrás de blogueiras, lojas online. Lia tudo sobre o assunto. Sempre lia sobre como tinha sido a estrada delas, queria saber se havia um caminho das pedras a se trilhar. Ver, entender e entrar em contato com mulheres gordas empoderadas (mesmo se elas não se vissem como empoderadas) foi um ponto de mudança muito forte para mim. A terapia também ajudou, principalmente a perceber que alienei o meu corpo por todo esse tempo.
O amor não nasce rápido em um solo semeado apenas com sementes ruins, sentimentos ruins. Para ele nascer é preciso força e persistência, porque, amigas, quando a florzinha do amor nasce, como no poema de Drummond, ela cresce até no asfalto. E depois se espalha. E é por isso que estou escrevendo esse texto, para tentar semear amor-próprio, um amor próprio que me veio a duras penas, mas que quero que atinja a todas. Assim, ficamos mais fortes.
Tudo foi um processo. Demorei, demorei muito, mas quando me vejo agora, percebo como o meu corpo, gordo, com estrias e celulites, é incrível. Ele faz posições da Yoga (ainda meio desequilibrado, mas estamos trabalhando nisso), ele nada, ele dança, ele sente prazer, ele se transforma. Ele tem e ocupa um espaço no mundo. Ele é MEU. E por isso tudo, ele é lindo. Lindo. Lindo. E, minas, tenho certeza que o de vocês também é.[/fusion_text]