
Ela tinha 26 anos, uma carreira consolidada, internacionalmente reconhecida e premiada, abriu caminho para muitas, inspirou outras tantas… Mas o que deu em um jornal foi que “seu visual não era dos mais atraentes”, que ela era uma “gordinha que brigava com a balança”, como se seu corpo desviante não fosse digno de seu sucesso e legado. A cantora Marília Mendonça se foi e continuou sendo vítima da gordofobia que não poupa as mulheres nem mesmo depois de mortas. Escancarada com uma lente de aumento agora, a discussão sobre o assunto nos leva à reflexão do porquê emagrecer é um projeto de vida de muitas de nós, mesmo quando sabemos que se trata de um reflexo do preconceito.
Apesar dos meus 115 Kg, do Índice de Massa Corporal (IMC) 43 e de todas as situações e enfrentamentos de gordofobia que já vivenciei (muitos relatados nesta coluna), sou o que se considera uma “gorda menor” pelo espectro das pessoas com corpos gordos. Meu manequim é 50-52, é verdade, mas minha configuração corporal faz com que eu aparente menos. Correndo o risco de entrar na lista das canceladas do ano, revelo que, às vezes, penso que seria mais fácil se eu descesse alguns números na balança do que firmar a posição que tenho ocupado desde que comecei com a pesquisa #OPESOEAMÍDIA, há quase seis anos.
Digo mais fácil no sentido de “não ter mais que me preocupar com isso”, pois de todas as experiências de emagrecimento que tive ao longo da vida – e foram muitas, como você pode conferir aqui – nunca foi sem dor ou sem trauma. Mas fico pensando que, às vezes, só às vezes, queria só ser, só existir, sem ter que justificar o tempo todo a minha existência, sem ter que enfrentar olhares julgadores, sem ser preterida em tantos lugares, em tantos casos, a despeito de minhas qualidades, simplesmente pelo tamanho do meu corpo. Privilégio magro que chama.
Essa característica de gorda menor, em certos momentos, também é um não-lugar dentro da militância antigordofóbica. No que diz respeito à questão estética, isso me coloca mais próxima do padrão de beleza do que das manas maiores que lidam com questões que minha situação atual não me permite experimentar, por mais empática que eu seja. Em algumas ocasiões me sinto até deslegitimada na fala, sabendo que, quanto maior a pessoa, mais invisível ela é na sociedade gordofóbica, o que me dá esse certo privilégio, em determinados aspectos.
Quando penso racionalmente sobre isso, vejo mais um reflexo da gordofobia em minha vida, que fundou uma insegurança tão profunda em mim de tal forma, que, mesmo com toda vivência e estudo, não me permite bater o pé e falar plenamente sobre essas questões.
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Mesmo assim, cabe dizer que não existe uma espécie de passabilidade para o meu corpo. Mesmo menor, sou gorda e ponto. Isso não é questionado. Não é questionado pela médica que, mesmo olhando meus exames estando ‘ok’, não se conforma com a minha condição de saúde e diz que eu tenho que emagrecer porque, segundo ela, eu pareço triste, isso mesmo! Não é questionado pelo cara que na intimidade do quarto me faz juras de amor, mas, na hora de assumir uma relação em público, o faz com uma mulher magra. Nem é questionado pelos algoritmos das redes sociais que insistem em me oferecer remédios, chás, cintas e receitas milagrosas para a perda de peso, como contei nesta coluna passada.
A pressão social para o emagrecimento é tão forte, que o simples fato de eu me ver como uma fraude por pensar que, magra, as coisas ficariam melhores para o meu lado, denotam os mecanismos de ação de todo esse preconceito. Dos 13 aos 30, ser magra foi tudo o que eu mais quis na vida, e, em alguns momentos, eu até consegui. E daí que eu lembro exatamente como foi me olhar no espelho e não me reconhecer na imagem refletida depois de emagrecer 12 quilos em um único mês – 30 em um intervalo de 3 meses.
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Recordo como foi ficar fraca, com os cabelos ralos, caindo, com as unhas descolando das pontas dos meus dedos, anêmica, confusa e desorientada. Mas também me lembro de como as pessoas falavam para mim: “parabéns!”, “continue assim!”; além da famosa frase: “a saúde em primeiro lugar?!”, associando magreza a uma pessoa saudável apenas pelo visual.
Essa experiência já tem quase 15 anos, e só há 5 me dei conta de que esse processo era uma das diversas formas de materialização da gordofobia. Ter passado por isso, no entanto, é o que me faz ter a maturidade para, hoje, entender que essa possível vontade de querer perder peso, que aparece me tentando, para conformar meu corpo inconformado, na verdade, está permeada pelo preconceito que vivencio. O emagrecimento, então, não melhora as coisas para o lado de ninguém, muito menos numa sociedade gordofóbica, ele apenas escancara o preconceito.