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28 de janeiro de 2016

Pequenas esposas: segundo

Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim "Pequenas Esposas", de Fabiane Guimarães

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Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Pequenas Esposas”, de Fabiane Guimarães. Leia os capítulos anteriores aqui.

A  casa da fazenda devia ser um castelo, em outros dias, mas agora era só uma ruína, como toda grandeza que perde o sentido. Uma construção retangular, azulada, abraçada pela varanda de degraus despedaçados. Matias, que era meio claustrofóbico, tratou de encher o lugar de janelões, capturando o vento cheio de poeira para esculpir os móveis. Como também tinha um medo secreto de morcegos, reforçou o forro de todos os tetos, e nem as bocas cavadas nas paredes reduziam o calor. O interior não conservava dignidade maior, ele todo acúmulo e abandono, vestido para uma festa que já tinha acabado há anos.

Ainda assim, Maria Vicentina deixou o queixo cair. Nunca tinha estado em um espaço que fosse pelo menos cinco vezes maior do que seu quartinho. Cômodos enormes onde poderiam dormir todos os irmãos, lado a lado, e ainda assim restaria vaga. Com o melhor vestido que tinha, rosa desbotado com limão, ela foi guiada pela propriedade pelas mãos do pai, que reverberava de contentamento. Ela nem olhava para os lados, olhava para cima, tentando desvendar tanta felicidade. Havia uma coisa diferente projetada no rosto moreno e barbudo que nunca se revelava, um traço de expressão vitoriosa capaz de assustar. O pai desperto, assim falante, só podia ser sinal de mudanças cruéis.

A fazenda se espalhava em verde, um verde grosseiro que enganava os olhos e virava amarelo. Corria até o horizonte e morria em um cinturão de morros. Havia nos fundos um quintal misterioso de florestas e galinhas, ao qual o pai não deu muita atenção: queria mesmo é que ela visse as cabeças de gado que roçavam a terra, descontentes, pululando da paisagem como moscas em uma mesa de almoço.

“Cada um umas vinte arrobas, por aí”, declarou, sonhador.

Se não estivesse aterrorizada, Maria Vicentina acharia lindo.

“Tenho que trabalhar, fique aqui esperando ele”, o pai mandou, terminando a apresentação na sala de visitas. “Obedece direitinho seu marido.”

Batendo as botas para tirar o barro, com um gesto lânguido e desleixado, sumiu. Sumiu e deixou a menina com o coração entalado no pescoço, batendo tão forte que ela achou que fosse desmaiar. A casa escura e quente, apesar das janelas gigantes, causava estranheza, e diante de tudo que era estranho Maria virava estátua. Não conseguiu nem sequer dobrar as perninhas miúdas em direção a qualquer um dos sofás esverdeados, labirintos macios, pontilhados de buracos. Na dúvida ficou parada em pé, segurando o saco plástico com tudo que tinha para carregar. Os olhos grandes de besouro ameaçaram chorar, mas a única lágrima escorreu rápido e foi se esconder atrás das orelhas. Ela ainda não conhecia pavor, solidão. Aquela era a maior tragédia de todas e ninguém tinha nem avisado.

Matias veio logo. Ela notou que era ele pelo ronco pavoroso da caminhonete, rasgando a manhã e o cascalho, e os passos ansiosos, anunciando que alguém estava para conquistar um troféu. De cabeça baixa, viu de rabo de olho que o doutor era roliço, pele leitosa manchada de gente adulta, quatro vezes mais velho. O cabelo apenas uma penugem rala e exótica: vermelha. Reluziu quando ele arrancou o chapéu, a moitinha de fios acobreados, num rosto com pintinhas marrons e olhos claros, quase amarelos, de gato. De forma tímida, Maria Vicentina tateou a memória do pouco que conhecia do mundo e concluiu que o patrão era igualzinho a um pica-pau.

“Olhe só para você…” – foi dizendo, a voz era fina e estridente.

Como não era muito alto, aquele homem-pássaro quase nem precisou se curvar para cumprimentá-la com um beijo estalado na bochecha. Maria Vicentina assustou-se com a reverência e a umidade grudada na pele marrom. Matias sorria, dentes escuros.

“Seu pai te mostrou tudinho sobre a nova casa?”, ele perguntou. Como ela não respondia, acrescentou: “e o gato, comeu sua língua?”

Maria Vicentina não conseguia falar: o coração ainda batia no pescoço. O medo tinha passado, um pouco, diante do sujeito que parecia tão bicho e tão meio criança.

“Com o tempo, perde essa timidez”, constatou, satisfeito com um menear de cabeça. Ela o espiou nos olhos pela primeira vez. Ele tinha uma expressão engraçada, um misto de adoração e ansiedade, que ela não sabia o nome, temperados com outra coisa, que ela também não sabia o nome. “Vamos ter que cortar esse cabelo pixaim. E comprar uns vestidos. Mas isso é pra depois. Tenho uma surpresa para você. Vem ver.”

Aceitando a mão quente e suada, Maria Vicentina foi. Matias tirou do bolso um molho de chaves, escolheu uma miudinha e enferrujada, destrancou uma das únicas portas do corredor que estava fechada. Quando abriu o quarto, a menina sentiu uma fisgada de espanto. É que ele tinha montado – após consultar o caseiro sobre os hábitos da noiva – uma recepção com tapete fofo e estantes de bonecas. Bonecas de todos os tipos. Também bolas, uma pequena bicicleta (ela nem acreditava), caixas coloridas todas fechadas. “Eu não sabia do que você gostava”, adiantou, “então comprei tudo.”

Maria, cujos brinquedos tinham sido a vida toda improvisados, fabricados pela imaginação, deu dois passinhos para dentro, duvidosa do pertencimento. “É tudo seu”, reforçou Matias, os olhos espelhados e úmidos. “Tudo seu, minha neguinha.”

 

 

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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