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3 de junho de 2016

Pequenas esposas: décimo nono

Não dá para criar amor nos frangos, Tião havia consolado, rasgando a pele fina do gogó. Maria Vicentina pedia desculpas. Sabia que também não dava para criar amor em gente.

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Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Pequenas Esposas”, de Fabiane Guimarães. Leia os capítulos anteriores aqui.

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Foto: kaboompics.com

Maria Vicentina tinha certeza de que não queria estar lá quando o menino fosse embora. Foi esperar no galinheiro, aquele quadrado de tela e madeira, apertado e escuro, onde as moradoras reinavam sentadas em sono eterno, dormindo silenciosas, inflando de ar as penas pesadas, as asas inúteis – pareciam respirar pelo corpo inteiro. Várias vezes a menina havia perguntado, aos sussurros para não pensarem que estava louca de falar com as galinhas, por que é que vocês não voam. Tem asa, é para voar. Em resposta, elas cuspiam ovos e ciscavam o chão do quintal, garimpando grão de milho, engolindo poeira. Vicentina lamentava, as coitadas eram burras.

No começo, até dava nomes para os bichos, mas desistiu na primeira vez em que Geraldina obrigou-lhe a torcer um pescoço. Não dá para criar amor nos frangos, Tião havia consolado, rasgando a pele fina do gogó e esguichando sangue no terreiro. Maria Vicentina voltava para pegar ovo, pedia desculpas (as outras não escutavam, além de burras deviam ser surdas), achava que o caseiro estava certo.

Agora sabia que também não dava para criar amor em gente.

Às vezes as galinhas ficavam estressadas – essa é a palavra que o caseiro usava – e não botavam ovo de jeito nenhum. Por sorte, no dia em que Maria enrolava para não ver Arthur sumir, encontrou dez, que foi guardando na cestinha para ter com o que se ocupar. O revirar de ninho, expulsando o capim seco pelos dedos e levando bicadas afáveis, era boa distração. Pela fresta das paredes de madeira dava para observar o movimento, o entra e sai de Matias, nervoso à procura de bagagem. O menino não tinha quase nada e certamente também matava tempo, parando por uns bons minutos na soleira da cozinha, mirando cada centímetro do quintal, desconfiado do sumiço de Vicentina. Só desistiu quando percebeu que ela não apareceria. Talvez tivesse sido só impressão, mas ela pensou tê-lo visto acenando, de mãos tristes, na direção do galinheiro. Era só impressão.

Sem ele, os dias iam ser um bocadinho mais difíceis, entretanto Maria estava certa de que haveria de passar. A gente sente falta, mas é só no começo, concluiu, deixando os ovos em cima da pia, olhando a janela, o terreiro vazio. Se tinha superado – ainda que com muita dor – a separação dos irmãos, do pai, da mãe, até da tia que falava pouco, também esqueceria Arthur. Esqueceria naquele minutinho mesmo. Pronto. Já esqueci.

Matias não havia dito nada, ruminando sua alegria no jantar da noite passada – o último. Arthur e Maria ali sentados de frente, cutucando o arroz cheios de tristeza. Pronto, agora vamos ter sossego, o marido só veio a resmungar no quarto, tirando as ceroulas encardidas. Comemorava o tempo perfeito daquela debandada. Foi você que expulsou ele, Vicentina sussurrou. Eu não, ele aliviou, a mãe é que chamou. Benza a Deus. Agora dorme que amanhã é cedo.

No cômodo ao lado, porém, Arthur estava dividido. Queria ir, mas não queria ir. Doída era aquela sensação de se partir em dois. No quartinho de bonecas, porque sabia que ela ia precisar de um lugar tranquilo para deixar a raiva espiralar de vista, escondeu sua despedida. Maria Vicentina encontrou logo os elementos estranhos num baú de tesouros  – o estilingue, meia dúzia de pedrinhas, preciosas pela aerodinâmica da pontaria, e um bilhete.

Para que ela soubesse decifrar, ele desenhara no pedacinho de papel um coração, um relógio e um ônibus (que parecia um carro comprido) com um menino e uma menina de palitos sorrindo no banco traseiro. Dizia-lhe, à sua maneira: eu volto. Ou: fique tranquila, que um dia você também vem.

Maria Vicentina, sem querer, começou a esperar.

 

***

A mãe tinha emagrecido. Foi a primeira coisa que ele notou, descendo na rodoviária interestadual, desconfiado. Tinha emagrecido e estava mais chique. Foi logo dizendo, enquanto dava a mochila para ela segurar no ombro, você tá seca. Marcela sorria com os olhos, a boca, o nariz e até as orelhas. Chorava um pouquinho, também, e quase quebrou-lhe as costelas no abraço.

“Espero que não tenha sido muito horrível”, sussurrou, pagando um pão de queijo (ele estava morto de fome).

Arthur formigava por dentro de perguntas, condenações e ideias, mas decidiu ir por partes. Foi mastigando o pão de queijo e bebericando um chocolate quente, deixando que a mãe o apertasse pelos dedos. A experiência na casa de Matias ensinara o menino a ser paciente.

“Você foi casada com ele?”, começou.

“Mais ou menos.”

“Ele tem uma nova namorada agora.”

“É?”

“Uma menininha.”

A sombra do desconforto invadiu o rosto de Marcela. Uma menina, uma nova. Sentiu estranheza e uma pontada sincera de constrangimento. Arthur tomou como positivo o sinal de lamento, seguiu em frente, ela sabia do que ele estava falando.

“Ela não gosta muito dele. Parece que só tá lá porque não tem pra onde ir. Eu acho também que é errado. Não é não? Ela é mais menor que eu. Não pode casar”, argumentou, de repente muito adulto.

Marcela suspirou alto. Agora havia entendido a seriedade do filho, os bons modos, aquela excitação guardada debaixo dos olhos. Achava que seria recebida com pedras, rebeldia e silêncio – e com razão. Mas o menino, estranho, ignorava as férias forçadas, o abandono. Só queria saber das coisas.

“Sim. Não é certo”, admitiu.

“E por que a gente não faz alguma coisa? Pensei em ligar para os homens. Sei lá. Mandar a polícia bater lá, dar o bacu no velho.”

A mãe quase sorriu com a fé inesperada. A verdade era mais complicada. Matias era um veterano do distrito rural, conhecido por suas preferências tortas, ninguém questionava os pecados alheios no meio do mato. Um homem daqueles, então, dono de metade da cidade depois do morro, não havia nunca de ser alvo da justiça. Até tinham tentado, os pais pobres de uma das garotinhas com quem ele havia traído Marcela, há menos tempo do que ela gostaria de admitir. Policiais civis à paisana, gente do ministério público federal, uma visita que acabara com cafezinho frio na mesa e apertos de mãos camaradas. Matias, o sonso, com o sorrisão inocente na cara. Desmontado de ódio em cima dos pobres coitados que tinham feito a denúncia, esses sim pagaram o preço, mortos de fome e processados por calúnia. Era de rir.

“Gente rica não vai presa, Arthur, você sabe disso”, Marcela explicou.

“Você tem que fazer alguma coisa. Ela não pode ficar lá.”

“Não é problema meu. Nem seu”, lamentou, porque sabia que não queria voltar ao passado, não queria de jeito nenhum. Só precisava fechar aquela porta, abraçar o novo futuro, a cidade de concreto, aquela sim era uma ilha de esperança. Brasília – inocente apesar de tudo – era feita para recomeço porque nascera alheia às coisas que aconteciam ao redor, no interior primitivo onde suas fronteiras acabavam.

Brasília era a casa deles.

“Eu sinto muito. Esquece isso”, acrescentou, porque viu que a pena roía a esperança do filho.

“A gente tem que fazer alguma coisa”, Arthur repetiu, muito sério.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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