Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Pequenas Esposas”, de Fabiane Guimarães. Leia os capítulos anteriores aqui.
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Maria Vicentina foi embora dentro dos sapatos de Arthur. Achou que o menino não sentiria falta, devia ter outros pares, talvez mais novos. O calçado macio ficava ligeiramente grande em seus calcanhares, quis pensar que tinha se apossado dele por uma questão estratégica – a caminhada longa – mas era só o desejo de não deixar tudo para trás. Com os pés enterrados nos cadarços imundos, seria capaz de se lembrar.
De Matias, não levou nada. Nem de Geraldina, Tião ou qualquer um dos outros. Só Pedro veio trotando calmamente na rabeira, atendendo ao assobio discreto. Nos braços, a sacola de pano com o resto da memória que valia a pena, retratos antigos e a boneca de porcelana, todas as coisas que queria preservar. Maria Vicentina não voltaria, estava certa disso, por sorte ninguém se colocou no caminho. Era ela e a estrada, empoeirada e laranja, cortando lonjuras.
Ultimamente, a tristeza andava entalada no meio do peito, nem se bebia água fazia descer. Crueldade é o que o marido tinha feito, tirando dela o único lugar onde ainda se sentia segura, raspando as árvores da terra, a jabuticabeira em época. Só de maldade. Maldade e ciúmes. Ele tinha se justificado com um palavreado confuso que terminava em resmungos satisfeitos: ela tinha faltado com o respeito. Espancado o decoro. Passava tempo demais ali embaixo com o menino, não era coisa de mulher decente, então ele arrancava o mal pela raiz.
Arthur, por sua vez, parecia autenticamente assustado e melindroso. Deu de ombros quando Maria Vicentina foi chorar a perda do pomar. Ele é doido, consolou – jeito vago e impreciso – liga não. Alguma coisa parecia deixá-lo nervoso de manter contato, a ameaça fazia efeito. Afastava-se dela de um jeito sereno e devagar, como as embarcações à deriva, puxadas pela correnteza ao umbigo do mar.
Os garotos eram todos uns idiotas, até os inocentes, concluiu Maria, tomando decisão de fugir depois do lanche da tarde, quando todos estavam embriagados e sonolentos. Naquele tempo todo, nunca tentara. Tinha agradecido o teto e a comida, e oferecido tudo como manda o regimento das esposas. Geraldina estava errada quando a reprovava pelos maus hábitos. Ela havia sido só passividade e obediência, nunca ingratidão. Estava na hora de dar as costas para aquela mentira mal vivida.
Sabia que o caminho terminava em um lugar onde todos iam quando precisavam comprar cerveja e cigarro. O ponto onde passavam ônibus e terminavam as esperas, restinho de civilização. Tinha um plano e algum dinheiro, surrupiado do colchão onde Matias às vezes escondia suas economias de reserva. Queria comprar uma passagem, qualquer uma. Talvez chegasse lá no fim do dia.
Na primeira meia hora de caminhada, percebeu, era uma péssima ideia usar os tênis de Arthur. Os dedos suados escorregavam pelo espaço de sobra. De forma que se contentou em substitui-lo pelos próprios chinelos, adaptando-se melhor ao terreno esburacado e arenoso. Dos dois lados do sol, não se via alma viva. Só mato e algumas placas estampando letras, aqui e ali, fazendo troça de sua cegueira para a leitura. Manteve o ritmo preciso e calculado, sempre em linha reta e em frente. A entrada da fazenda aos poucos desapareceu, lá atrás, com seus arbustos elegantes e a porteira branca.
Maria Vicentina, entretanto, logo sentiu o calor incendiar a garganta e parou para beber um pouco de água da garrafa de plástico. Água que já tinha ficado quente, fervendo no estômago. Deu um pouco para o cachorro e jogou outro tanto na nuca para lavar o cansaço. Hoje em dia ela já não era mais tão pequena, tinha crescido delgada e espigada. Matias dizia que estava corpuda. Os quadris abriam-se em carne, pavoneando a chegada da puberdade, mas ela se orgulhava mesmo era das pernas, compridas e ossudas feito as dos irmãos. As pernas magricelas cobriam três passos de uma vez. Com elas, venceria a subida.
Foi arremessando pedrinhas de cascalho para Pedro buscar e fazendo jogos mentais consigo mesma, para se distrair enquanto escalava o caminho. Quando chegar ali naquela árvore, bebo mais água. Se alcançar o horizonte, paro para fazer xixi no mato. Negociou com o próprio corpo um jeito de vencer o calor, o medo, a distância. Ganhou quando viu: primeiro um telhado de zinco. Depois, as paredes caiadas e sujas da estação rodoviária, barraquinhas montadas vendendo queijo e manteiga. Ninguém olhou para ela.
Encantada pela quantidade de gente estranha, Maria Vicentina parou para descansar perto de uma mureta. Não viu nenhum ônibus, mas algumas daquelas pessoas tinham jeito de espera. Um velho limpava as teclas de uma sanfona, sentado no banco de pedra, enquanto um menino – seu neto? seu filho? – tomava uma coca com uma mala no colo. Vicentina ardeu de inveja. Achou que também merecia um refrigerante.
Mas o balcão das bebidas ficava lá para dentro do galpão, para alcançá-lo era preciso vencer um labirinto de mesas, contornar a mesa de sinuca, no bar onde homens morenos de pele curtida jogavam cartas. Com a cabeça baixa e deixando seu cão do lado de fora, Maria invadiu o ambiente quente, as paredes descascadas de tinta e o chão encerado de sujeira. A presença imediatamente interrompeu o jogo e o chiado das conversas. Teve vergonha porque estava acostumada com a reação, os peões da fazenda faziam o mesmo quando Matias não estava por perto: uma risada sacana, seguida do assobio rasgado.
Tá perdida, lindinha?
Vem aqui, amorzinho.
Puxando a blusa cavada para cobrir o umbigo – as roupas andavam curtas e Geraldina não queria comprar mais – Maria pediu, formalmente, um guaraná. O dono do bar era um homem gordo de pescoço vermelho e cabelo grisalho encardido. Ficou olhando-a com desconfiança, o palito de dente murcho na boca. Pegou a garrafa verde, usou um abridor para arrancar a tampa. A menina pagou e fez que ia embora, mas respirou fundo e venceu a vergonha.
“Quando é que passa ônibus, moço?”
“Ônibus para onde, fia?”
“Qualquer lugar.”
O sujeito não respondeu. Continuou a olhá-la de um jeito estranho, olhos vermelhos de coceira.
“Hoje capaz que não vem mais nenhum. Tá tarde.”
Ela sentiu os joelhos fraquejarem. O lamento deve ter sido óbvio.
“Amanhã cedo passa um monte. Tem um quartinho aqui no fundo do bar. Você pode esperar lá, passar a noite”, o homem propôs, cotovelos arreganhados no balcão.
Maria Vicentina cravou seus olhos negros naquela expressão engraçada do sujeito. Entre divertida e cobiçosa. Era a mesma cara que Matias fazia quando chegava ansioso pela cama, o mesmo tipo dos peões da fazenda, gorgolejando indecências. Ela já sabia o que significava quando os rostos de todos os homens pareciam um só.
Não, obrigada – agradeceu, pegando o refrigerante gelado e saindo do galpão o mais rápido possível. Acreditou no dono do bar porque, seladas as janelas e portas de latão, as vendinhas eram aos poucos abandonadas. O velho da sanfona colocava o instrumento na mala e seguia caminho, com o menino de marionete. A festa chegava ao fim, controlada pela luz que ia rareando, logo mais todos os estranhos sumiriam, engolidos por buracos no mato.
Sobrariam os homens do bar, as cobras que se alimentavam do escuro e as onças, míticas, que tinham fome de meninas magras. Maria Vicentina deixou-se tomar, pela primeira vez, por um breve assalto de desespero, sentada na calçada: o que é que eu vou fazer agora. Notando o descompasso, Pedro distribuiu-lhe uma lambida no queixo. Até ele parecia cansado e arfante, até ele sabia que a resposta era só uma.
Conforme a noite vinha chegando, enfeitada com seus colares de estrelas, pegaram o caminho de volta. Maria tinha que voltar para casa. Não era lar, mas era casa, e serviria enquanto ainda não fosse possível alcançar o mundo.