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14 de abril de 2016

Pequenas esposas: décimo terceiro

Agora, entretanto, a garota entendia que havia de ter mais irmãos na vida, ainda que não tivesse mais pai e mãe

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Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Pequenas Esposas”, de Fabiane Guimarães. Leia os capítulos anteriores aqui.

Happy children in nature at sunset
Foto: GraphicStock

No dicionário familiar de Maria, não constava o verbete amizade. Com onze crianças espalhadas pela casa, sempre fora certeza natural à mãe que ali ninguém precisava de outra companhia. Das propriedades vizinhas de onde, vez ou outra, assomavam os filhos de outros desconhecidos – os meninos podem jogar bola com a gente, tia – a negativa brotava automática e ríspida. Vá caçar o que fazer, vá. As criaturas aleatórias e estranhas, que nenhum dos irmãos conseguia conhecer por inteiro, iam embora correndo, temerosas do facão que a mulher empunhava. Com o tempo pararam de chegar, os joelhos cascudos e ralados desapareceram da plantação, foram pousar em outros terreiros. Chutando a bola eternamente remendada, Vicentina e os outros brincavam entre si, sem nunca sentir falta de mais gente.

Agora, entretanto, a garota entendia que havia de ter mais irmãos na vida, ainda que não tivesse mais pai e mãe. Agora tinha Arrtú (era assim que ela pronunciava o nome, comendo letras e rosnando sílabas. Ele fazia troça, dizia que ela era roceira, mas era bonitinho). O garoto virava uma companhia constante e tímida, sempre que estavam sozinhos iam ter um com o outro, inventar histórias e jogar dominó. Ele até ajudava em uma ou outra tarefa para ver o tempo passar mais rápido para ela, longe dos olhos de Geraldina, que não via naquilo nada de bom – resmungava que não era natural que menino e menina ficassem assim enrabichados, muito menos gente casada.

Mancando de insatisfação, a governanta espreitava entre os pés do pomar, ouvia os risos finos escaparem dos troncos carregados e uma rusga de preocupação se abria, resgatando uma lembrança azeda de sua própria infância: recordava os calções rasgados que os meninos do vale costumavam baixar, mostrando as partes encardidas; o pai torcendo-lhe as orelhas rechonchudas no flagra, porque olhar o umbigo dos garotos era “arquia”.

A palavra – anarquia cortada ao meio – significava uma revolução de pecados. Geraldina apanhava de cinto. Aprendera a temer o toque e o cheiro do sexo oculto, já nessa época, porque meninas precisavam se preservar.

Maria escutava o sermão, repetido com rancor, com os olhos cravados no teto. A governanta ameaçava detoná-la, contar para o Matias, que trataria de dar um jeito naquela concorrência. Maria ria, cheia de ousadia. Não é filho dele, uai? Não é ele que trouxe?

Arthur, Maria descobriu, tinha ido ao colégio. Não agora, que eu fui largado aqui, perdi o ano – ele se lamuriava. Ela repetia incontáveis vezes que havia uma escola perto, sabia disso, era a escola que a professora bonita queria levá-los todos – era só pedir para Matias – mas o menino se fazia de surdo, de forma que demorou algum tempo até que ela percebesse que ele, na verdade, não fazia muita questão de voltar.

“Eu pensei que, se você for lá pra me vigiar, ele deixa eu ir também”, lamentava.

Arthur não entendia. O que é que a garota queria tanto com a escola, um lugar chato feito o inferno, te colocam na sala, vem o professor, te obriga a ficar. Reprovei três vezes, odeio matemática. Então um dia, ela toda cismada (tinha disso, suspirava assim fundo na garganta e saía emburrada, chutando pedras e fazendo voto de silêncio), decidiu concordar. Eu vou para escola com você.

Com um sorriso tão grande e elástico que pareceu que ia rasgar a cara, Maria não se conteve e abraçou o corpo magricela de Arthur, maior que o dela por um capricho de alguns centímetros (e muito mais quente).

****

Decidiram que tinham que traçar uma estratégia para convencer Matias. Não era só assim, chegar pedindo, todas as outras tentativas haviam fracassado. O fazendeiro tinha oscilações de humor comparáveis a fenômenos naturais imprevisíveis: um dia acordava tranquilo e calmo como as manhãs de sol, no seguinte derrubava cadeiras, desfiava o cinto nas costas do filho e mandava em Maria só pelo prazer de vê-la se desdobrando por um capricho. Não assim: precisavam esperar pela ocasião mais favorável, dobrar os truques do temperamento.

Enquanto o marido não sossegava, Maria sentia-se à vontade para dividir com Arthur toda sua coleção de tesouros. No quartinho de bonecas, onde ninguém nunca viria incomodá-los. Uns restos partidos de brinquedos antigos, lembranças dos irmãos, uma foto meio apagada de três deles. O retrato da ave-maria, que ela tinha encontrado no quartinho do pai fazia uma eternidade, e que prometera guardar para sempre, com suas palavras enigmáticas no verso.

“Lê pra mim?”, pediu, ansiosa, em uma tarde dessas.

Embaraçado, o menino fez um esforço. Não era mesmo muito bom nisso. Foi lendo pausadamente. Ave cheia de graça. Maria de olhões esbugalhados. Unha roída até a cabeça do dedo, parecia que ela bebia as frases, se sentiu assim todo importante, fez que sabia ler direito.

“Ai, Maria, foi mal, esse texto é muito difícil”, reclamou, sem saber passar para o próximo verso.

“Vai logo, está bom.”

“Você não tá entendendo nada.”

“Não tem problema, entender.”

Retomando a difícil tarefa, Arthur cismou com a leitura, tropeçando nas palavras tortas e complicadas, com sílabas meio truncadas. Assim seguiu até o derradeiro amém, que rogou alto, agradecendo pelo fim, quase como fazia na missa, no tempo em que a avó adoentada o arrastava para a igreja. Deitada no tapete desfiado, Maria guardou a voz. Eram tão bonitos, os sons formados pelas letras desconhecidas. Guardavam segredos de trás para frente numa música boa, um baile só de sussurros.

“Quantas palavras existem no mundo?”, a menina perguntou.

“Eu sei lá”, respondeu Arthur. “Um bocado.”

“Você conhece muitas?”

Estufando o peito de galhardia, o menino exibiu-se: um zilhão.

O pé espancando a porta, porém, interrompeu a mentira. Matias entrou no quarto com o rosto vermelho inchado de raiva, o que fez a dupla se encolher, consciente de que se tratava de um estágio preocupante de ódio, quase tempestade. Uma fúria que se anunciava primeiro na coloração dos lábios, espalhando-se lentamente pela pele leitosa em quadradinhos de sangue: quando Matias virava assim, bolha de ressentimento em alta temperatura, só restava esperar pela trovoada final.

Que veio, na forma do indicador curto, mirando a cabeça do garoto e errando Vicentina por alguns centímetros. Vem cá agora. Tremia. Maria agarrou a mão de Arthur por um décimo de segundo antes de deixá-lo ir, porque guardava nos dedos a força toda que ele precisava para enfrentar os assomos de Matias. Uma firmeza que ela, por milagre, tinha de sobra hoje em dia: se conhecesse todas as palavras do mundo, saberia que se chamava coragem.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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