Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Pequenas Esposas”, de Fabiane Guimarães. Leia os capítulos anteriores aqui.
Foto: Adia Novary/Free images
Marcela sangrou logo, não tinha nem dez anos. Essa menina minha vai dar um trabalho, disparou a profetizar a mãe, na época. Com os paninhos esfarrapados – que os absorventes descartáveis eram muito caros – surgiu o constrangimento. Na rua, vazando sob olhares alheios. Também na escola, diante das colegas de língua azeda que riam das pernas trançadas e dos peitos que balançavam sem sutiã. Foi por isso que parou de ir. A mãe dizia que ela estava virando moça, decerto encontraria uma ocupação longe do quadro negro e não precisaria se preocupar, nunca mais, com manchas em cadeiras de madeira. Manchas vermelhas crescendo em pétalas. Menstruação era uma flor de sangue e vergonha desabrochando dentro dela.
No começo, ajudava em casa, a lavar e passar roupa para fora. Mas logo mostrou sua completa inaptidão para o serviço e foi dispensada, passando a vagar pelas ruas da pequena cidade que, esta sim, florescia em miséria e tédio. Só ganhava alguma graça quando chegavam por lá, em dia de sábado, os peões da fazenda. Os patrões do mato. Os botecos lotavam, multiplicavam-se as quermesses e as mulheres, ansiosas por um bom casamento, saíam à noite de vestido curto e pintura na cara. Marcela nunca estava entre elas, porque ainda não era mulher, mas queria ser. Vivia insistindo.
A mãe, no começo, prendia. Depois começou a desistir. Tinha dores nas pernas, nas costas, nas juntas. Quer sair, vá, mas não me volte com bucho – cuspia, prostrada no sofá. Marcela ardia de pena da mulher com pele de papel, que se encolhia de ódio desde que o pai havia ido embora – era pedreiro e fugira enrabichado com uma dona dez anos mais nova. O pai de Marcela tinha se despedido delas assim: é o amor, acontece, ela (a dona) faz com que eu me sinta mais jovem. Ele parecia mais jovem, com o peito estufado e as roupas estranhas, compradas de segunda mão, até passava colônia.
Quando ele sumiu, a menina entendeu que as mulheres eram a máquina do tempo preferida dos homens. A amante rejuvenescia o pai de um jeito que a mãe não podia mais, porque estava encovada e cheia de calos das viagens já feitas. Velha de uso.
Quando viu a menina travessa enfiada em um vestido desbotado, no pátio da igreja, Matias também quis viajar a bordo de tanta juventude. Ela tinha 14 anos nesse dia. Ele, 26. Ciente da consciência nebulosa que despertava nos rapazes, Marcela colecionava namorados, porque crescia em tamanho e audácia. Ela notou quando o herdeiro mais rico da cidade chegava perto, com sua camisa cara abotoada até o pescoço, ruivo que nem sabugo de milho. Era feio, mas deu corda.
Não levou muito e já namoravam à vista de todos, tomando sorvete na praça e passeando na caminhonete dele. O velho Franco ainda era vivo e Matias o ajudava no meio da semana, escapulindo para a cidade sempre que podia para abraçar sua menina pelas pernas. Não foi com ele, contudo, que Marcela perdeu a virgindade: escolhera para isso um charmoso mascate que lhe deixara de presente um colar de pérolas falso. Aceitou Matias com uma experiência prévia minguada, mas confiante.
A mãe, para surpresa da comunidade, aprovou logo o relacionamento. Se fosse outro, não teria sido assim. Fazia bolo de fubá, esperava a visita dele com café quentinho. Se quer minha filha vai ter que juntar com ela, avisou. Dois meses depois, estava instalada na casa que ele tratou de arrendar para as duas, um sobrado com cor de girassol na esquina mais nobre. Já não passava nem lavava roupa para fora. Achou que seriam felizes para sempre.
(Antes de morrer, padecendo de um câncer que lhe consumira a carne dos olhos, a mãe costumava cuspir indecências e ojerizas. Perguntou por que, de tanta coisa, Marcela tinha escolhido ser puta. Ela tratou de responder, com toda a franqueza que a culpa permitia: é porque aprendi cedo.)
Na casa de paredes amarelas, Marcela não demorou a adoecer de insatisfação. A vida era mais divertida quando ia para os bailes camuflada de adulta entre as amigas. Agora, não havia espaço para risos fáceis e as companheiras viravam-lhe o rosto na rua, despeitadas com o sucesso do casamento. De repente entabulava conversas com o escuro e ganhava tarefas árduas, compridas, um cuidar de casa que nunca se acabava. Tudo para esperá-lo chegar, no fim de semana, com a vontade acumulada.
A rotina de madame não se prolongaria ao infinito, como muitas vezes ela achava, temendo ficar velha em um instante. Lavando roupas usadas até se carcomer em rugas. Temia o fracasso da pele, a beleza evaporando naquele mormaço, mas o “casamento” foi destruído antes. Dois anos depois, descobriu que Matias andava procurando meninas mais novas. Ela já tinha 16.
Doeu, apesar de tudo. Sempre dói. Ela o confrontou com as provas que circulavam nas bocas alheias, ele desconversou, negando que estivesse viajando nos braços de outras menininhas. Ansioso por menos idade, por menos tempo. A mãe pedia, de terço na mão, que Marcela relevasse, que os maridos são todos assim mesmo. Ela chorava, magoada com a indiferença. Ele não é meu marido, respondia.
Nunca seria. Marcela sabia que não aguentava a humilhação de ser trocada por crianças. Começava a achar que Matias era doente. Doente mesmo, da cabeça e dos nervos, que nem os loucos da cadeia. Fez as malas e o recebeu, em uma sexta-feira, pronta para desistir. Sem escândalo, avisou: me dê dinheiro que estou indo embora é para bem longe. Ele contribuiu, manso e passivo. Enquanto partia (já sabia para onde), arrastando a mãe consigo, a mãe doente e enfezada, a barriga ia sacudindo de náuseas. Só ali descobriu-se grávida.
Por algum tempo cogitou tirar. Até fez uns contatos, esquentou chá e assuntou os preços. Era caro, arrancar o menino, e ainda perigava ela mesma morrer. Melhor ficar, deixar nascer, depois dava para adoção, abandonava na porta de igreja, essas coisas de novela.
Arthur, indesejado e de última hora, quem diria, de repente justificava todo o resto. Ela desconhecia um amor que vinha assim, sem moeda de troca. Curioso: era o amor que valia tudo.
***
O pedido que o garoto fazia agora, 12 anos depois, estava complicado atender. Não queria se meter na vida de Matias. Não era de enfiar o bedelho em rotina desconhecida só porque o filho queria. Foi Beatrice, que ironia, quem começou a atrapalhar suas ideias. Beatrice que arranjara aquele apartamento, coisa fina, que arrumou o emprego na loja de cosméticos (Marcela andava interessada pelo negócio, agora deu que queria ser maquiadora). A velha rainha das putas palpitou: o mundo seria melhor se as mulheres todas se ajudassem. A consciência de Marcela, restaurada de gratidão, foi pesando.
Cheia de remorso pelo rosto desconhecido da menina, sofrendo o terror de uma convivência forçada – se é que de fato não queria continuar brincando de ser mulher – Marcela padeceu de dúvida. Mirava-se nos espelhos côncavos do curso de maquiagem, afinando a sobrancelha com o lápis de cor, começava a ser ver no passado, os traços de menina promovida a esposa. Quando veio o sábado, toda transtornada, tirou da garagem o corsinha arrematado do vizinho. Encheu o tanque e calibrou os pneus, sabia dirigir fazia muito, mas praticava pouco e não tinha carteira. Não fazia mal. Foi receber o filho no quarto, vidrado com o videogame novo.
Vem, chamou. Vamos lá visitar sua amiga.