Em 2005, um casal obteve autorização judicial para interromper a gravidez após descobrir que o feto tinha uma síndrome que impediria que ele sobrevivesse fora do útero. Durante a internação hospitalar, a gestante, já tomando medicação para induzir o parto, foi surpreendida com uma decisão do Tribunal de Justiça de Goiás determinando a interrupção do procedimento. Um padre havia impetrado Habeas Corpus para impedir o procedimento que, no seu ponto de vista, seria um homicídio. A história seria um envolvente enredo de novela se não fosse realidade.
A ingerência do padre na vida do casal não foi o único sofrimento imposto. Após a interrupção do procedimento, a grávida voltou para casa com a dilatação para o parto já iniciada e sofreu durante 8 dias em casa, até a hora do parto. Como era esperado desde o início, o feto morreu logo após o nascimento. Diante do episódio, o casal ajuizou uma ação por danos morais contra o padre, que preside a Associação Pró-Vida de Anápolis/GO. Após o Tribunal de Justiça de Goíás negar o pleito, nesta semana o Superior Tribunal de Justiça condenou o padre pelo “intenso dano moral” causado e fixou a indenização em R$60.000,00.
O Código Penal determina que não será punido o aborto necessário – quando não há outro meio de salvar a vida da gestante – e no caso de aborto humanitário – aborto no caso de gravidez resultante de estupro. Não há previsão legal para o aborto quando há má-formação do feto. Porém, em 2012, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito da gestante de submeter-se à antecipação terapêutica de parto na hipótese de anencefalia, previamente diagnosticada por profissional habilitado, sem estar compelida a apresentar autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão do Estado (ADPF 54/DF).
A decisão da nossa Corte Suprema teve como fundamento a laicidade do Estado, a dignidade da pessoa humana, o usufruto da vida, a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o pleno reconhecimento dos direitos individuais, especialmente os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. O STF afirmou ainda que a obrigatoriedade de preservar a gestação produz danos à gestante, muitas vezes levando-as a uma situação psíquica devastadora, pois na maioria das vezes predominam quadros mórbidos de dor, angústia, luto, impotência e desespero, em face da certeza do óbito.
O emblemático posicionamento do STF quebrou paradigmas e deixou claro que a letra fria da lei não pode prevalecer em detrimento dos direitos humanos das gestantes que, diante do caso concreto, não podem ser submetidas à tortura de prolongar uma situação que culminará na morte do feto. Diante dessa inovação, casos análogos – inviabilidade de vida extrauterina do feto – tem sido analisados pela justiça e, majoritariamente, têm sido autorizados.
Podemos afirmar que a sociedade brasileira têm evoluído paulatinamente no sentido de que a religião não pode se sobrepor aos direitos individuais das mulheres nos casos de inviabilidade fetal.
O tema aborto sempre será um tabu. Porém, a discordância não pode se confundir com o desrespeito pelas escolhas dos indivíduos. Divergências sempre vão existir, mas elas não podem impor determinada ação e permitir a violação dos direitos das gestantes provocando-lhes sofrimento inútil. Acima de qualquer convicção ou opinião está o respeito à escolha pessoal do outro. Com essa lição muitas questões polêmicas poderão ser resolvidas.
*Você tem alguma dúvida judicial que pode ser também a de outras mulheres e quer que nossa advogada responda em um artigo? Escreva para azminaresponde@azmina.com.br