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18 de agosto de 2020

O fetiche com o sofrimento negro

Hora de colocar em prática nossa desobediência epistêmica a fim de cessar as representações que ditam que o lugar do povo negro é na subalternização

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fetiche sofrimento negro
Arte: Tarsio Diniz Mendes

A artista interdisciplinar portuguesa Grada Kilomba disse certa vez que não quer ser apresentada por um texto vitimizado, “Para ver minha biografia reduzida ao corpo, à beleza, ao sofrimento e à dificuldade, prefiro não dar entrevista. Tem sido muito difícil mostrar uma mulher negra na normalidade. Vê-se que é o desafio de criar um novo discurso”, afirmou. Sua história não se resume “a uma mulher negra que venceu na vida” afinal, ela é muito mais do que isso e explicou, “Na Europa eles escrevem que eu sou professora, que fiz isso ou aquilo naquele museu. No Brasil é diferente, preciso alertar sobre tudo isso”.

Colocar em prática nossa desobediência epistêmica bate de frente com a ideia secular de que o lugar da mulher negra é o da negação intelectual e coisificação do corpo. É comum ver esse fetiche com o sofrimento diário vivido pela população negra e periférica, Grada Kilomba defende que a branquitude se considera sinônimo da condição humana. 

Questionar discursos colônias e racistas (que se estabelecem como violência estrutural de um grupo sobre outros) é primordial para que nossos posicionamentos barrem a continuidade de representações que ditam que o lugar do povo negro é na subalternização. Recentemente acompanhamos as discussões envolvendo a publicação feita pela antropóloga Lilia Schwarcz sobre o novo filme da Beyoncé “Black is King”, que exemplifica como a branquitude comumente crítica e enxerga as produções feitas por pessoas negras através de sua régua da universalidade branca eurocêntrica. São eles que melhor entendem o que é exagero, ou uma adequada versão da realidade, padrões aceitáveis de comportamento, cultura e o que é algo legítimo de reconhecimento acadêmico.

Leia mais: Antirracismo é prática diária, quais são as suas?

Outra antropóloga e intelectual feminista Lélia Gonzalez costumava discorrer sobre a importância de nós, pessoas negras, assumirmos nossa própria fala “Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa”.  Em seu conhecido artigo “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, Lélia comenta (aliada à conceitos psicanalíticos em algumas reflexões) como boa parte das pessoas considera racismo algo natural (esse texto é de 1984, percebam como hoje, mesmo com as conquistas do Movimento Negro, continuamos caminhando a passos lentos). “Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto têm mais é que ser favelados. Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano.

Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é que, quando se esforça, ele sobe na vida como qualquer um. Conheço um que é médico; educadíssimo, culto, elegante e com umas feições tão finas… Nem parece preto”, escreveu Lélia. Podemos acrescentar o ilusório mito da democracia racial e a fama nacional de que somos um povo frequentemente pacífico, portanto, é engano pensar que temos um território de extrema violência e genocídio indígena e negro. 

Emicida, pandemia & antirracismo como prática diária

Utilizo o exemplo do respeitado  rapper Emicida: em entrevista para uma revista voltada ao público masculino, conversou sobre seu atual momento de vida e jogou luz acerca de sérias questões raciais.  Num determinado momento do texto, temos a informação de que ele já passou fome e dormiu na rua. Tudo isso tem valor e constitui a sua história, mas não precisa necessariamente aparecer repetidas vezes na mídia. Com pessoas brancas e de origem pobre, a gente não vê o fetiche dando as caras dessa maneira explícita, pois já está condicionado que dinheiro, conhecimento e poder são destinados  “naturalmente” aos brancos. “A branquitude tem essa codependência, essa ambivalência dentro de si. Eu não preciso da branquitude, mas ela precisa de mim para ser branca. A tarefa mais exaustiva é limpar-me dos resíduos que são projetados sobre mim, mas que eu não sou”, reflete Grada Kilomba. Se um grupo de indivíduos para se sentir bem, poderoso e até satisfeito no posto de “branco salvador” precisa reprimir e anular pessoas negras que diferem do seu universo, significa que temos uma questão complexa e muito perversa para ser ressignificada. Praticamente um caso de terapia. 

Leia mais: A raiva das mulheres negras: a energia que move nosso ativismo

Se brancos gozam mais facilmente de direitos e privilégios, a pandemia do Covid-19 escancarou qual o rosto e a cor dos mais de 100 mil que morreram no Brasil. Maior parte das vítimas era preta ou parda, masculina e morreu em hospitais públicos. A médica e diretora da Anistia Internacional no Brasil Jurema Werneck,analisa que o  atendimento de saúde se encontra com a questão da raça justamente na ausência, carência e na insuficiência , pois o Sistema Único de Saúde (SUS) não está acessível para todo mundo como deveria ser.  

Não queremos disputar quem sofre mais, porém reivindicamos equidade em todas as áreas sociais e econômicas, além de direitos políticos respeitados e uma mínima conscientização por parte dos brancos de que o racismo é uma problemática que vocês criaram, portanto, vocês precisam resolver isso, e tal ação envolve a perda de alguns poderes. 

Só com muita responsabilidade acerca de questões raciais, compreendendo que o racismo é um fator importante no debate da desigualdade social no Brasil e o reconhecimento dos diversos privilégios, poderemos considerar as pessoas brancas como reais aliadas, lembrem-se que o antirracismo é prática diária

Ser tachada somente como  sobrevivente, vítima e coitada não nos ajuda a acessar a raiz do problema estrutural promovido pelo racismo. Precisamos, todes, enxergar que se não tratarmos a ferida do período sombrio da escravidão, latente até hoje, não vamos conseguir evoluir legalmente ou conscientemente com mais rapidez. Temos muitas conquistas sim, movimentos e coletivos negros assim como muitas mulheres negras construíram caminhos importantes, entretanto a jornada é longa.

Que a provocação de Grada nos aguce a entrar em contato com a nossa grandeza interior, somos gigantes; e que a prática antirracista, individual e coletiva, seja realmente  uma das prioridades em nossas vidas.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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