No Brasil, muitas coisas são ditas sobre a identidade de pessoas trans. Continuamente têm surgido questionamentos em discussões que visam cristalizar a identidade de mulheres trans e travestis como algo “falso”, pessoas falsificadas e não-mulheres.
Contudo, mulheres trans e travestis não estão tentando roubar, tomar ou furtar o lugar de nenhuma mulher. Pelo contrário: estão atuando, fortemente, para conseguir estar em locais onde sejam tidas e vistas com dignidade. É exatamente isto que tem pautado o transfeminismo.
Nesse sentido, a resposta para a pergunta que dá título a esta coluna é, sem dúvidas: não. Qualquer afirmação diferente pode vir sombreada de transfobias. Isso porque afirmar que mulheres trans e travestis estão tentando tomar o lugar de mulheres cisgêneros* é destituir o pouco de humanidade constituída com muito esforço e rebeldia por essa parcela da população.
A sub-representação: quem pode dizer quem é quem?
A própria necessidade da pergunta evidencia uma situação: a ideia de que mulheres trans e travestis são menos “gente” do que indivíduos cisgêneros. Neste caso, de que são menos mulheres. Tudo isso faz parte de um conglomerado de violências que corroboram com um discurso que deslegitima a identidade de pessoas trans.
Esse tipo de pensamento ganha força amparado em declarações baseadas na biologia, na política conservadora e antidireitos humanos, em discursos religiosos. E não podemos esquecer das ativistas radicais trans-excludentes que atuam fortemente em processos de precarização da vida de mulheres trans e travestis.
Nós podemos nos perguntar: por qual motivo mulheres trans e travestis teriam o interesse de tomar posse dos espaços galgados por mulheres cis quando não conseguem, sequer, estabelecer lugares na sociedade? Ou melhor: quando são constantemente compelidas a pensar em outras possibilidades de ser e estar? Essa conta não fecha.
Apesar da organização e dos passos firmes do movimento brasileiro de travestis, os avanços são tímidos e estreitos. Logo, é fácil para determinados grupos tentar projetar uma autoridade no sentido de dizer quem é ou quem deixar de ser isso, ou aquilo. Mas há resistência.
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Entre uma aula de forró e um xote de transfobia
Recentemente, fiz uma inscrição em um curso de forró. O anúncio dizia “aulão para mulheres”. Entendendo a importância de espaços seguros, resolvi que fazer aulas de forró poderia ser uma boa ideia para este momento da minha vida.
Pensando em evitar constrangimentos, como sempre faço e me dou esse direito, enviei um e-mail informando que sou uma travesti. Deveria? Não. Mas prefiro não me colocar em situações vexatórias, ainda que o fato de precisar enviar o e-mail seja por si só desconfortável.
Vejam bem: era algo simples: uma aula de forró. Apesar de morar em São Paulo, sou recifense nascida e criada na capital pernambucana. Cresci ouvindo Luiz Gonzaga, Elba Ramalho, Magníficos e outras bandas.
Passadas algumas horas, recebi a resposta da escola de forró. Dentre poucas frases desconexas em um email: “é um aulão para mulheres, desculpe vamos ressarcir o seu pagamento”. Uma resposta rápida, simples e recheada de transfobia.
Li duas vezes e já fui excluindo o e-mail. Fiquei me perguntando, durante alguns dias, como as pessoas e instituições conseguem ser tão perversas com mulheres trans e travestis nesse país chamado Brasil. O direito de estabelecer qual corpo pode o quê, sintetiza uma vontade de exclusão muito simbólica. É como dizer: aqui você não entra. E, ao dizer “não entra”, enunciam também que outras travestis e mulheres trans estão impedidas de estar.
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Nós somos mulheres, responda
Se alguém perguntar para você se mulheres trans e travestis estão tentando arrancar direitos de outras mulheres, responda, sem medo, que o que temos feito é: comprar a briga junto às pluralidades de mulheres por um país que compreenda a importância de todas as singularidades. Estamos ao lado das mulheres indígenas, mulheres com deficiências, negras, quilombolas, em situação de rua, ribeirinhas e tantas outras porque também somos essas mulheres.
Não poderíamos, do ponto de vista ético, tomar algo que também nos pertence. O nosso compromisso é de reivindicar e ampliar os espaços e lugares, no sentido de democratizar os acessos a partir do que somos: mulheres.
*pessoas cisgênero são aquelas que se identificam com o gênero que foi designado quando nasceram, o qual é associado socialmente ao sexo biológico.