[fusion_text]Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Nascem Flores no Asfalto”, de Mariana Lozzi. Leia os outros capítulos aqui.
A morte era uma coisa da qual a gente não sabia muito bem. Diziam, na época em que covas ainda eram abertas, que os familiares do morto se amontoavam em torno do fundo buraco, para dentro do qual um caixão de madeira era ninado, dependurado por cordas que o fariam chacoalhar irresoluto até atingir o umbigo da terra. Uma vez que o morto estivesse depositado dentro da caixa e, a caixa, dentro do chão, homens pardacentos de rostos indistintos apareceriam, como que conjurados pela própria morte. Silenciosos, eles trabalhariam para devolver uma montanha homérica de terra ao buraco de onde ela havia sido retirada mais cedo, pelas mesmas pás e pelos mesmos pares de braços pardacentos. As flores enfileiradas sobre o caixão – mal haviam despontado da terra – a ela retornariam.
Criança, me fartava de pensar sobre essa coisa antiquada que é esconder o morto embaixo da terra, guardá-lo em uma caixa e cobrir a caixa de bichezas e sujidades, como se ele tivesse durante todo tempo consumado vida insetal, e não humana. Ficava aflita a pensar na fundura da cova, no tempo em que os pobres coveiros levavam para espicaçar o solo e na falta de propósito que era mover tanta sujeira do lugar só para revolvê-la ao cândido buraco. E, enquanto tudo isso tomava palco embaixo do refletor branco do sol, os familiares estariam lá, prostrados diante da cova, com as cabeças sacolejantes, audiência de um só morto. Quando vovó era acometida por um resfriado e as imagens de morte atacavam o vão das suas orelhas, ela dizia assim: Sorte minha que começaram a engavetar as gentes.
O morrer teve de ser reinventado quando o espaço na terra escasseou. Sem canteiro que fosse para enterrar os velhinhos que se fartavam da vida, teve início a política pública do engavetamento. Paredes da largura de viadutos foram construídas nas partes mais afastadas da cidade, e, à medida que as gentes cansavam de brigar por covas e aderiam ao luto emparedado, eram acrescidos novos andares nas muralhas dos mortos.
Passaram a chamar a nova forma de morrer de engavetamento, porque as paredes em que guardavam os mortos eram repletas de portinholas à semelhança de gavetas lacradas, que se alinhavam até o último andar, com a simplicidade de janelas pareadas em um prédio. Como as lápides, o dever das portinholas era diferenciar os mortos uns dos outros e garantir às pessoas o direito de velar o punhado de concreto correto. Elas estariam, assim, numeradas, para que não se corresse o risco de empreender viagem até aquelas partes da cidade e dedicar ao morto errado as preces certas.
Com o número correspondente à gaveta do falecido, o visitante entraria em um dos andaimes enfileirados em frente aos muros e – assim como os mortos costumavam ser rebaixados até o umbigo da terra na época em que ainda enterrávamos as pessoas – ele seria içado até o andar correspondente à gaveta do morto, que poderia estar a uma distância besta do chão ou metido na mais terrível das alturas. Diante da gaveta numerada, finalmente seria possível curtir lamento tórrido, recordar os tempos de viv’alma, alimentar silêncio e até depositar flores e presentes na pequena cesta suspensa sobre a portinhola.
Por mais longas que fossem as filas que se formavam em frente aos andaimes e por mais difícil que fosse determinar se seria possível ter com o morto ainda no mesmo dia, era bem sabido que, uma vez que o visitante se encontrasse diante da gaveta designada ao falecido, a saudade deveria ser consumada ligeiro, porque o tempo de visitação era um só – surdo e incomunicante. Seria, então, vez de outro enlutado ter o choro transformado em vapor no ar rarefeito.
Quando os dirigentes do Estado viram, a troco de projetos caríssimos e quantidades estapafúrdias de concreto, ferro e metal, o problema dos mortos resolvido, não se fartaram de propagandear as benesses do engavetamento coletivo. Mostravam no noticiário centenas de homens a manejar a argamassa nos pontos mais altos da construção, equilibrados sobre hastes finíssimas, concentrados em não despedaçar os ossos em um escorregão, ou sorridentes, a devorar marmitas ao lado uns dos outros com as pernas a balançar no ar enquanto um sol agigantado despejava vermelhidão sobre suas costas. Criança, eu chorava só de pensar na possibilidade de um dos homens dependurados nas hastes despencar em debilidade de chuva, fácil que era se acidentar. Para amansar minha angústia, vô Heitor dizia que eu devia era ficar feliz pelos homens dependurados no esqueleto de ferro da muralha, porque, antes de começarem a engavetar as gentes, eles procuravam emprego sem sorte, e agora tinham serviço para ao ano inteiro.
Em afã modernoso, tão logo as muralhas dos mortos foram inauguradas, começaram campanhas para garantir morte encoberta a todos. Assim, a cada recém-nascido seria designada uma gaveta, que já haveria de vir acompanhada de nome e data de nascimento, cravado ao lado de um espaço inabitado, reservado à outra data sobre a qual nada se podia adiantar, a não ser que ela chegaria.
As mães eram naturalmente inimigas das gavetas dos filhos, mas não podiam fazer nada além de esperar que, nelas, eles tardassem a deitar. Tão cedo pariam, tinham que assinar garantia de morte emparedada, porque a população envelhecia depressa e as gente temiam que, assim como os velhinhos haviam esgotado a terra dos cemitérios, não tardariam a ocupar as melhores gavetas, apressados que eram em tomar para si as benesses do povo. A lei assegurava que para aquelas que, como Ana, receberam intimação para emprenhar e a acataram dentro dos limites do prazo devido, seria reservada uma gaveta até o terceiro andar da muralha dos mortos, lugar privilegiadíssimo, porque era sabido que nos andares mais altos – onde fazia frio tremendo – eram engavetados os tipos de que as gentes não toleravam, como os bandidos, os endividados e as mulheres sem filhos.
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Os pássaros faziam estardalhaço com as asas. No 12° andar da parede onde haviam engavetado vovó, uma revoada de coruíras queria ter com as romãs depositadas na cesta da gaveta ao lado. Com pios altíssimos, elas armavam bandalheira para disputar os pedaços das frutas, abriam as asas e se empertigavam de peito estufado, ziguezagueavam para longe da parede e empreendiam mergulhos furiosos. Eu cobri a cabeça com os braços, fechei os olhos e senti o rufar das asas muito próximo à minha nuca. No chão do andaime, apertei o botão de segurança vezes seguidas. Nada. Esperava ouvir o mesmo rangido que as cordas de aço fizeram quando me içaram até ali, sentir no estômago que eu perdia altura, perceber enfim que os gritos dos pássaros se faziam cada vez mais distantes, alheios ao meu medo. Não me movi.
Quebrado. Parecia que, assim como os pássaros engoliam romãs, eu engolia os pássaros, e, uma vez dentro de mim, eles se alojavam no meu peito e passavam a bater asas aceleradas, abarrotavam-me de pios e de descidas tenazes, lançavam-se contra as nuvens mais altas e caiam com as asas duras e os olhos negros muito abertos, feitiço de uma vida curta, cristalizada no susto. Meu susto. Quando senti o gelado do cano dentro de mim achei que eu desapareceria de susto. Deixaria de ser a Lis e protagonizaria uma vida submersa no assombro, atravessaria a ponte entre o sub e o sobre, e, uma vez que deixasse de ser-me, minha presença equivaleria à sensação de uma cor, de um sopro ou um ardido no peito, essas coisas para as quais a gente não encontra nome, porque elas que sabem de si o nada exato que sabemos delas. Vitima de esvaziamento tão rápido e definitivo, as gentes duvidariam que um dia eu já estive lá, com elas, na torção de corpos sem fim, descalça sobre grande fornalha.
Em cima do andaime e com o corpo colado no chão – para não atiçar os humores das coruíras –, eu curtia raiva tão grande de vovó que queria mesmo era me levantar e correr o risco de ser judiada pelos pássaros só para rabiscar obscenidades na tampa da gaveta dela, para desgostá-la na morte, do mesmo jeito que havia feito em vida. Ela escolheu a hora pior de todas para morrer, para me deixar sozinha, assim como mamãe, que debandou cedo em um capricho odioso. Vovô Heitor também havia partido em hora imprópria, nenhum deles teve a candura de me perguntar se eu queria ir junto, se suportaria ficar. Pensei comigo mesma que essa foi só mais uma das perguntas nunca feitas, porque me via de súbito cercada por elas, pelas escolhas que não pude fazer, e por isso silenciaram dentro de mim, como se a própria possibilidade de escolha fosse fantasia das mais impudicas. Naquela terra, certas coisas se passavam por dadas, bramiam naturalidade sintética, e eram endereçadas a nós com imo de feliz sentença, como a carta que faz caminho até o capacho da nossa casa no dia em que completei 22 anos e que garantiu que, dentro de mim, eu sentisse o cano.
Desde que vovó havia teimado em morrer, eu invoquei de caçar as perguntas que nunca me fizeram. Eu as procurava em todo lugar, como se, ao abrir a tampa de uma panela ou trocar a fronha dos travesseiros, eu pudesse me deparar com as escolhas que não fiz, durante tanto tempo segredadas, a espera do seu descobrimento, acumuladas na forma de pesada chuva – a mesma chuva que perigou vovó de morte e que fazia goteira no teto da minha cabeça. Pensava, mais do que nas coisas que eu assumidamente não queria, naquelas para as quais nunca havia cogitado dirigir não, porque eram tidas como certas, naturais, de uma simplicidade comovente – necessária, diriam.
As brincadeiras de boneca tardes adentro, os estágios em creches, em escolas – tudo havia me preparado para gerar filhos e deles cuidar até que estivessem capacitados para gerar mais filhos. Quando me dirigiam olhares na rua e eu aprumava a postura com disciplina quase espartana sabia que, mais do que procurar a cor exata dos meus olhos, o formato do meu cabelo, os títulos dos livros que eu carregava entre os braços, a pressa que eu tinha ou o tempo que sobrava, as atenções das gentes se voltavam para o meu corpo. Era sobre meus seios e quadris que recaiam, porque nada parecia mais razoável do que observar o corpo de uma mulher, já que ele era a própria natureza, feito para modelar entre os dedos até tomar forma insana, distendido e repuxado para obedecer aos mais insensatos intentos. Cedo na vida eu aceitei que era normal isso de um homem fazer-se de súbito carpinteiro quando se depara com uma mulher e olhá-la como quem avalia uma cadeira, mas não revela em nenhum momento que a sua função consiste em suportar o peso de outros corpos sobre o seu, diz somente que é o móvel mais precioso que já se viu.
Eu me desesperava de alegria ao me imaginar detentora de olhares, fantasiava que um dia acordaria limpa de passado, que as minhas anomalias desistiriam de espalhar sujidades sobre a minha pele e que as gentes todas me procurariam com assombro maravilhado no olhar, porque veriam em mim tudo que haviam esperado desde que me disseram mulher. Esses olhares que tanto busquei vieram ao meu encontro, enfim, no dia em que recebi a carta de aliciação e que a casa de vovó se pôs festejada por amigos e vizinhos. Curiosos e sorrisudos, diziam que eu também deveria me cobrir de felicidades, porque na televisão não se fartavam de dizer que a política de aliciamento era um jeito todo lindo de admirar as mulheres, pois seria dada a elas chance de desempenhar papel honroso na salvação do nosso país, e que, assim heroínas, estariam assistidas pelo governo e seriam tratadas com o respeito devido.
Eu tinha dores muito fortes no estômago quando pensava na carta, no prazo, nos olhares, então resolvi me alienar dessa coisa linda que diziam ser o meu futuro caso me cobrisse de heroísmos. Fiz de tudo para retardar os ponteiros do relógio, para me sozinhar o quanto pudesse no apartamento e navegar pelos veios leitosos do tempo com lassidão. Ana ainda me acusaria de curtir preguiça despudorada, diria que esperteza mesmo seria me empenhar em agarrar com mãos gulosas os bocados do mundo de que eu tinha fome, porque não faltava muito para que nascesse em nós o primeiro filho, e que depois disso seria impossível dizer se tomaríamos gosto por emprenhar e desistiríamos dos apetites outros, ou até mesmo se as gentes não encontrariam novas formas de nos convencer a repovoar o mundo. A minha inconsequência – além de apoquentar Ana – metia medo em vovó, que conhecia o bocado cru da realidade que era reservada a mulheres que, ao se fazer de desentendidas, proclamavam-se donas de si.
No mais grosso das ruas, dizia-se que as mulheres aliciadas curtiam cio. Zombavam de nós com risos abafados, espalhavam palavra que, uma vez intimadas a emprenhar, as mulheres davam de sangrar em semelhança às cadelas, e se punham ensandecidas para meter, porque o relógio da política tinha ponteiros mais ligeiros que o do corpo nosso, e não perdoava atrasos. Desde muito cedo as mulheres mais velhas nos instruíam a segredar o nosso aliciamento dos homens, argumentavam que, caso eles soubessem que vivíamos sob a mira de um prazo, evitariam ter conosco, dificultariam nossa missão em muito, porque eram poucos os homens que queriam ser pais.
Com o tempo, quanto mais nos era revelado sobre a política de aliciamento, mais se tornava prudente segredá-la, porque chegavam aos nossos ouvidos histórias de homens que judiavam de mulheres aliciadas e depois espalhavam palavra que não haviam feito outra coisa que não prestar favor, porque elas estavam de tal modo determinadas a emprenhar que perdoariam as ofensas todas antes mesmo de serem cometidas, quiçá agradeceriam a atenção. Atrás das cortinas do apartamento de vovó, eu observava a câimbra contínua das ruas, o deglutir lento do trânsito, e me imaginava lá, metida entre as gentes, com todos os olhos voltados para mim, causa de horror e lascívia. Eu perambularia com as mãos meladas por azedo suor, sem saber ao certo como se porta uma aliciada, com que cadência ela anda, com qual timbre fala, com quanta paixão amaldiçoa. Quais trejeitos os sentenciados usam para sinalizar o seu trajeto em terra?
Quando a lembrança da proximidade do prazo me atingia, eu panicava de um jeito que nem vovó sabia como me acalmar, quais palavras dizer, quais calar, quais comprimidos deitar sobre a minha língua. Era só dentro desse endoidecer agudo que eu era capaz de sair do apartamento, porque o desconforto de estar em casa finalmente se igualava ao medo de andar na rua. Quando a minha tristeza me conduzia aos gestos corajosos – e somente então – eu suportava levantar a cabeça e olhar os homens nos olhos, tomada por uma náusea tão violenta, tão vômito do mar inteiro que eu custava a me aguentar de pé. Então eu ria e baixava a cabeça, enquanto eles traçavam passos na minha direção.
Uma vez, em um quarto de hotel, um homem de mais de 40 anos revirou os meus fundos com pancadas rápidas até espirrar como baleia alérgica dentro de mim, e disse: Pronto, isso deve bastar. Empanzinado de si, ele deitou na cama de braços abertos e eu me debrucei sobre o seu tronco ofegante – como havia visto tantas mulheres fazerem nos filmes – para perguntá-lo com, cílios tremelicantes e um meio sorriso, se ele havia gostado. Eu o fiz com mesma candura com que uma enfermeira perguntaria ao paciente o que havia achado da sopa de chuchu. Com os olhos presos no relógio, ele escorreu os dedos pelo meu cabelo me disse que havia sido difícil a ponto de ele se duvidar de si.
Meter com garotas tristes me deixa com a sensação de ter assistido um documentário de guerra. Eu prefiro filmes de ação, mas é questão de gosto – explicou, antes de me tascar um beijo na bochecha e vestir a cueca, ainda do avesso.
Pouco antes de abrir as pernas e enfiar o cano de metal entre elas, eu me senti como um documentário de guerra. O corpo inteiro pulsava como um coração rouco, prestes a falhar. A quentura demorou para descer, mas finalmente escorreu pelas coxas. Foi quando vomitei sobre os meus pés e enterrei o cano o mais fundo que pude, tão fundo que o imaginei a despontar vermelho pela garganta.
Quando Ana chegou no apartamento, eu tentava estancar o sangue com uma toalha de mesa. Ela gritou pelos vizinhos, que receberam ordens de ajudá-la a me carregar até o carro. No hospital não dirigiram miúda palavra a mim, aplicavam as injeções sem antecipar a picada da agulha, as enfermeiras ignoravam minha sede, os médicos só dirigiam considerações a Ana, que gesticulava, exasperada, enquanto a língua era percorrida por palavrões longuíssimos.
Lis, eles sabem.
As barras de metal tremelicaram antes de a sensação de descida tomar o meu estômago. Ao abrir os olhos, vi as coruíras diminuírem à medida que o andaime perdia altura, depois de tanto tempo estacionado em frente à gaveta na qual guardaram vovó. De volta ao chão, deparei-me com homens fardados. Eles me esperavam.