logo AzMina
21 de julho de 2017

Nascem Flores no Asfalto: Capítulo 20: Do que são feitas as manhãs

"As palavras de Chica tinham aspereza de corte e se costuravam ao umbigo de Olívia como pesadas âncoras"

Nós fazemos parte do Trust Project

Foto: Carolina Oms

[fusion_text]Este é o último capítulo do romance de folhetim “Nascem Flores no Asfalto”, de Mariana Lozzi. Leia os outros capítulos aqui.

Éramos quatro. Quatro corpos à revelia do tempo, entregues aos humores do vento, como lençóis estendidos em uma manhã muito branca, curtidos pelo sol e pela chuva num deslizar serpenteado de dias. Do algodão foi perdoada a lisura, furos se expandiram sobre a pele nossa num avesso desabrochar, traças carcomiam nossos sonhos. Ali, a carne das frutas se desmanchava nas bocas das larvas tão cedo iam ao chão, tamanha era a fome das pragas. Éramos cercadas por pomares de caroços enegrecidos.

Eu tinha vontade de dar na cara de Olívia quando ela desembestava a falar sobre as caspas caídas da cabeça de Deus. Não se fartava de rememorar o dia em que a Chica fez chover vidro com o cabo da vassoura na escola dos seus filhos, era o assunto preferido para as horas de sol. Começava quando ela levantava o pé descalço, pretejado pelas sujidades do chão do pátio, acima da cabeça e nos mostrava cicatrizes de onde antes despontavam os dedos. Dizia que não deveríamos fazer troça com a cara dela, porque encontro com o divino era coisa das mais cerimoniosas, e que tudo começou com um ronronar de fera, nascido no mais fundo de si, seguido de uma cócega que a devorava pelas extremidades e se enrodilhava doce e feroz até o estômago, num espicaçar geral dos sentidos. Com curiosidade canina, ela farejava os calcanhares de Deus e mijava nas nuvens, reduzida à primeira parte de si.

Começou pelos dedos dos pés – Olívia dizia, e sabíamos que era hora de fazê-la calar o desvario, porque as outras presas emputeciam em muito ao vê-la matraquear as mesmas histórias absurdas que descortinava sem trégua desde o dia em que a trancaram no claustro ranhoso das celas com o resto de nós. Ela dizia que andar descalça sobre o vidro foi uma aleluia de corpo inteiro, como se Deus fosse uma mosca varejeira e a convidasse a saracotear com ele uma valsa barroca em torno da luz que vazava do céu.

Era como se o próprio sol se derramasse irresoluto sobre a minha cabeça, em um morno coruscar, e todas as coisas – até as miúdas, até as inominadas – ganhassem novos contornos, novas anatomias, e, ao reconhecê-las, eu percebesse que até então não as conhecia sequer. Sei nem como se deu essa espia de realidades outras, mas eu me vi habitada por um algo sem nome, vivo e de sangue quente, que uivava os meus lamentos, lambia minhas feridas e rosnava profundo, rouco e primitivo, famigerada fera. Depois do encontro com o Calamitoso – que me percorria num ronronar sem trégua, rio e afluente – eu me sentia chamada a pensar em versinhos toda vez que ouvia o trote macio do meu animal dentro do labirinto dos ouvidos, num ribombar assim nobre, feitiçaria das boas. Mas ele tinha modos de vento e não se deixava capturar, vazava pela síncope das minhas mãos tão cedo eu o buscava e evaporava diante do canudo dos meus olhos, mais arisco que gatos, pernilongos e serafins. Até o nome era de difícil pronúncia, uns chistes e gargarejos assim pungentes, como se aquele som fosse todos os sons, sabe, mas eu o ouvi uma vez, em um sonho. Diferente de todas as bestas extraordinárias, meu animal passou a viver segredado, como que submerso no umbigo das águas, contorno e sombra. Lá, ele travava as mais tormentosas guerras, as mais finas festas. Mas fiquem sabendo que ele era lindo como não cabe a vivo ser, todo aspereza e esplendor – embaraço de pelos negros, bafo quente e potentão a insuflar vida pelas minhas narinas, orelhas triangulares empinadas num auscultar inteligente, atentas ao respirar do mundo como se a morte se descortinasse no mergulho das vespas. Tinha quentura a escorrer pelos cascos, porque sangrava por entre as pernas – o meu animal.

Quando Olívia dava de falar descompensado sobre essas coisas custosas, de vida e de morte, Ana me procurava com os olhos. Por diversas vezes eu a abracei e disse bobices assim tão nossas, para que ela deixasse vazar risada pelo canto da boca, numa feliz contrariedade. Chica se limitava a nos visitar com um movimento sutil da mandíbula asteca, num devir de olhares estranho a ela, porque gostava mesmo de se pôr em imobilidade de esfinge e observar as coisas de longe, como se as bravatas de todos os dias não passassem de um alternar de filmes estrangeiros, que contam histórias sobre além mar, realidades assim diferentes da nossa, matéria para alguns sonhos, somente. Era ela quem mandava Olívia serenar dos intentos caso quisesse sair de lá viva e ver os filhos outra vez.

Olívia e Ana estavam prometidas de soltura, apesar de terem cometido o mesmo crime de Chica, e esperavam notícia da audiência que as absolveria por terem quebrado as janelas da sala do diretor do presídio no dia em que os guardas invadiram o pátio com sanha de nos judiar o couro. Olívia contava os meses nas cicatrizes do pé, Ana os havia esquadrinhado na ponta do lápis, na improvisação de um calendário que guardava embaixo do colchão e que revisitava todos os dias antes de sairmos da cela para trabalhar na cozinha ou esfregar o chão dos banheiros, esperançada de encontrar novas rasuras quando voltasse, e descobrir, num feliz assombro, que a marcha sonâmbula do tempo prosseguira sem ela e os dias haviam se sobreposto em andanças rumo ao futuro. As cicatrizes escassearam, o papel também.

As palavras de Chica tinham aspereza de corte e se costuravam ao umbigo de Olívia como pesadas âncoras. Elas impediam que brisas abstratas a varressem de perto de nós, num sequestro orquestrado por pássaros invisíveis de mergulhos violentos, que varavam alturas no afã de alcançar o sol. Talvez os raptores de Olívia fugissem da nossa desgraça anunciada porque curtiam simpatia pelas gentes do presídio, e a visão de mulheres enfileiradas a marchar com braços erguidos sobre as cabeças, num entoar multívoco de orações, em desvario de fé, maltratava-os até os ossos, e, assim solidários, punham-se danados da vida, com sanha de bicar os olhos de Deus até cegá-lo. Talvez não fosse nada disso, e Olívia não atinasse para as coisas do real porque os pássaros invisíveis que a içavam pela cintura em mergulhos de insanidade também curtiam natureza defeituosa. Capaz que nasceram atormentados pela centelha original, e, famintos, romperam as cascas dos ovos jurados de amores pela vida, cuja cauda mágica perseguiam num afã apaixonado, até que ela se virasse inteira e os engolisse em um beijo tépido.

Os ralhos de Chica para com Olívia davam resultado, porque ela sustava as destemperanças da língua, acontecida pela memória dos filhos, e cravava no chão olhos azuis como oceanos, duma fundura impenetrável. Era como se, no fundo deles, polvos primitivos estendessem tentáculos enegrecidos e rodopiassem como magos esguios, ou corais abrigassem peixes de esqueletos iluminados, num refluir infindo de vidas.

Ana chorava muito pelas manhãs. Acordava com os braços estendidos diante de si, a procura de Leozinho, tateava o ar numa mímica sonâmbula, não o encontrava. Era o som mais triste de todos, e eu chorava junto, só que baixinho, disfarçado, e pedia seguidas vezes a ela que me chutasse a cara, que me arrancasse os cabelos no gancho dos dedos, que me arranhasse as pálpebras, porque não suportava vê-la órfã de si. Ela pedia para eu deixar de bestagem e dizia que tudo se resolveria, que era questão de dias até que nos tirassem de lá, porque Olívia era importante demais para ficar naquele covil de bichezas e sujidades com o resto das gentes, e a prova maior disso era os jornalistas não se fartarem de pedir entrevista com ela, que todos os dias faziam ronda com as câmeras no portão e que gentes desconhecidas desciam de ônibus com celulares em punho e pediam para que os guardas os deixassem fotografá-la dentro do pátio, metida com o resto de nós em banhos de sol que nos esturricavam a pele e faziam as costas arderem de encontro aos colchões. Olívia tinha os olhos presos nos mergulhos dos pássaros invisíveis, Chica deixava escapar pela boca um solfejo antigo, de amor.

Fernando não vem mais visitar. Ele disse que estava ocupado com os assuntos da campanha, que era difícil sair do gabinete tarde da noite e dirigir até aqui, porque tinha as crianças para acudir sozinho. Pediu que eu sossegasse os humores, porque incumbira os melhores doutores d’alma de acompanhar o meu progresso e receitar vitaminas quando me pusesse com saudade extremada de casa.  Eu o disse para ir plantar batatas e chamei por Moço, doida de vontade de dizer a ele que no pátio não havia uma única flor, que o mato despontava da cerca por desleixo, não inspiração, e que os guardas se limitavam a rir quando eu os dizia que precisava de sementes e de uma enxada com urgência. Fernando não gostou de ouvir isso, e passou a levantar da cadeira para atender o celular mal havia sentado a bunda nela, ficava todo de cochichos, engraçava-se com o aparelho, como se eu não soubesse que outras Olívias transitavam por sua vida, e que por onde passassem deixariam lastros de perfume em gavetas e lençóis, muitas que somos, e iguais, aos seus olhos. Dorinha gostaria de saber do dia em que eu encontrei um caramujo escorado no muro, com as babas secas e a casca brilhantuda, já velhinho. Quando choveu vidro, teríamos dançado.

Eu achava de uma bestidão sem fim isso de transver beleza numa coisa bronca como quebrar janelas, porque ficava claro pra mim que, com a mesma banalidade com que foram erguidas, janelas podem ser derrubadas, nada muito diferente de uma cadeira que se junta às marteladas e cujas fibras se partem debaixo de bundas gordotas, coisas da vida, apenas. Deus nada que tem a ver com isso – eu dizia, mas Ana e Chica se aborreciam em muito comigo quando eu dava pito em Olívia. Tinham medo que ela fizesse escarcéu com os olhos, que chorasse igualada a mim quando havia acabado de atravessar aqueles portões e deixava crueza vazar pela garganta, esperançada que acusassem injustiça no meu abandono desordenado e me tirassem dali para que pudesse volver ao apartamento de vovó, onde encontraria Ana metida dentro do uniforme da escola, deitada no tapete da sala a comer chocolates em um encantamento preguiçoso, como se o deslizar do tempo não passasse de uma sugestão – declinada.

Era de suma importância que não deixássemos que vissem aquilo que de nós persistia com a teimosia de uma açucena que rompe a lisura esmaltada do granito e desponta, indômita. Devíamos segredar nossa força, quiçá nosso passado, porque era perigoso olhar os homens nos olhos, igualar nossas alturas. Há muito salgada, asfaltaram a terra que nossos pés percorriam descalços. A ciranda dos anos se renovava nos giros. Às vezes o tempo congelava, como uma ferida que se estanca, ou seguia marcha abrupta, envenenada, e visitávamos o adiante com a nobre selvageria de cães esfomeados. Corríamos ao encalço umas das outras chamadas a paisagens um pouco mais luminosas, um pouco menos avarentas, habituadas que estávamos ao oco das florestas de concreto, à melodia pontuda das goteiras, ao silêncio, principalmente. Quando conseguíamos notícias do lá fora, fosse por um jornal antigo que os guardas não confiscaram ou uma notícia que se anunciava da televisão do refeitório, avolumava-se em nós uma vontade doida de ver rostos conhecidos no brilhoso das telas, refletidos com casualidade, externados de nossa memória como se um único dia não houvesse transcorrido desde que nossos corpos foram engolidos por um corpo maior, de cimento.

Quando estendia os braços diante dos olhos, encontrava vovó. As mãos em flores, que eu tanto invejei na infância, viraram extensão de mim. Eram elas que seguravam as mãos de Ana, bastava eu repetir o seu nome, assim: Ana. O contorno das suas bochechas então se desenhava na tela dos meus olhos, e eu podia vê-la ainda criança, a chamar pelo meu nome e desbravar o pátio em um galope feroz, no arroubo das pernas longas. O cheiro da velhice, seu andar coxo, seu hálito doce – esses antigos conhecidos – voltaram a me encontrar. Eles agora me pertenciam, eram trejeitos nascidos do medo e da coragem de quem já assistiu as flores mais absurdas morrerem em secas e em enxurradas para, dadas a recomeços, despontarem do asfalto. Nos dias que se seguiam às tempestades, eu me inclinava sobre as superfícies das poças em espia secreta do céu, e entendia – finalmente – do que eram feitas as manhãs.

 

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Faça parte dessa luta agora

Tudo que AzMina faz é gratuito e acessível para mulheres e meninas que precisam do jornalismo que luta pelos nossos direitos. Se você leu ou assistiu essa reportagem hoje, é porque nossa equipe trabalhou por semanas para produzir um conteúdo que você não vai encontrar em nenhum outro veículo, como a gente faz. Para continuar, AzMina precisa da sua doação.   

APOIE HOJE