[fusion_text]Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Nascem Flores no Asfalto”, de Mariana Lozzi. Leia os outros capítulos aqui.
No dia em que o rato da Zefinha inventou de comer cal, o fim principiou.
Corria história que, anos atrás, as mulheres de muita estrada tinham judiado tanto dela que a pobre da Zefinha se apequenou dentro de si e parou de atentar para as coisas do real, dispensou palavra e deu de noticiar desassossego em um Ummm- gemido, surdo e comunicante, esticado numa umidade pavorosa, como se a garganta fosse gruta para profundos ecos. Ela se pôs, assim, esquecida do que era a vida para as gentes adultas – as gentes direitas, eficientes e esbaforidas – e encasquetou de passar as tardes de cócoras no pátio ou no canto da cela, a desenhar invisíveis no ar, as mãos metidas em luva de excrescências, os olhos numa transparência que trazia medo para dentro da gente. Era um Deus nos acuda sem fim quando a Zefinha dirigia o aquoso do olhar para uma de nós, ainda mais se era uma das mulheres responsudas, que tinha poderes mando nas outras. Verdade seja dita, as presas judiavam muito dela, diziam que certo mesmo era ensiná-la a conservar as vistas rasteiras, rentes ao baixio nojoso do chão, chamada a caramujo.
Para a Zefinha, tudo tinha potencial brincativo, desde as lagartixas albinas que procuravam abrigo do sol no úmido das paredes até os fios de cabelo que ela recolhia no chão do banheiro e embolava no rebuliço das palmas das mãos até formar nós de um crespor custoso. Ela chamava os nós por “meus pentelhinhos”, toda candura. Era muito carinhosa, a Zefinha, mas de tanto apanhar criou cisma com as gentes do presídio e não gostava que se aproximassem em demasia dela. Quando simulávamos tocar-lhe o rosto ou ombros, fazia cara de berro, separava os lábios em um “ó”macarrônico e deixava vazar da garganta o “ummm” cavernoso de que tanto gostava, coisa mais dela. Fazia isso na danação de dedos que arrancam cascas de machucados na sanha de coçar o vermelho moloso, reinaugurar feridas.
Desde que a Providência judiou do couro da Zefinha tempos antes de eu chegar no presídio, a coitada – que, segredavam, era conhecida da língua comum e perdeu o rastro da fala quando bateu a cabeça no cimento seco – passou a denunciar engodo nas palavras, perdeu ou poderes de conversação ou esqueceu mesmo do redondo e do agudo das letras. Não se sabia ao certo com quais humores ela descascava a pele grossa dos dias, mas o fato é que a Zefinha se cobriu de trique-triques mudos. O que mais me maltratava é que, mesmo alheada do bom português e incapacitada de xingar as gentes como se é devido, as mulheres mais pavorosas – adornadas de malvadeza – não deixaram de enfiar dedos melentos na sua comida, mesmo depois que ela se apequenou dentro de si. Quiçá fantasiavam que se vingavam dos dissabores do lá fora ao espezinhá-la de choro, porque fazê-la formar careta de indigestão à procura do contorno baço das palavras esquecidas equivalia a finalmente cometer os crimes de que foram acusadas. Para mim, a sovinice maior que cometiam contra a Zefinha era esconder o seu uniforme quando ela estava na mira do chuveiro. Faziam-no só para vê-la zanzar pelo banheiro despertencida, com as mãos a salvaguardar as vergonhas, cheia de pudores.
Eu dizia à Chica que tinha muita dó da Zefinha, que quando a via brincar com o rato ruivo no canto escuro do pátio o meu peito faltava rebentar de dor, a garganta se contraía em cólica, ficava desgostosa no corpo inteiro. A Chica fazia pouco da minha comiseração, professava que eu tinha que ter dó é da gente, porque a Zefinha – nessa cisma de se acriançar, de esquecer o duro da palavra – escolheu o caminho mais certo de todos, e que por isso fazia sentido nenhum ter pena dela.
A Zefinha decerto faz troça da nossa preocupação, Lis, saiba que ela ri com dentes pontudos dessa sua sanha de salvá-la de si. Os doidos estão protegidos do desconforto pior do mundo, porque trataram de despachar as cabecinhas para longe, experimentam realidades outras no livor da língua, nem se atentam para a nossa torção de pescoços, para a canseira que dá querer falar bonito, sorrir bonito, foder bonito, querer impressionar as gentes num afã sem fim, coceira que não se coça, câimbra que se renova, goteira que não seca. Daí a gente fica nervoso no estomago, sabe, cisma que bom mesmo é abafar desassossego com coiseiras e quinquilharias cada vez mais brilhantudas, espalhar para os amigos notícias de conquistas trócicas, desejar o desejo numa câimbra infinita sem, no entanto, nunca tê-lo visto a face, nunca ter segurado no colo um bebezinho amassado e lhe beijado os pés miúdos num fim de tarde. A Zefinha nem atenta para o próprio desvario, segue a vida plácida e patetinha, é sabedora da inutilidade que é se preocupar com a sandice alheia. Quero mais que as gentes piedosas parem de aporrinhá-la com conversas e chorumes, e que não me aporrinhem também.
A Chica zangava em muito quando eu vinha com sentimentalices para o lado dela, quando dava de chorar com a cabeça entre as pernas e me recusava a engolir as papas que despejavam sobre as nossas bandejas assim que o sol entreva a pino e os guardas cutucavam as nossas costelas com cassetetes em uma marcha muda em direção ao refeitório. O meu marasmo a punha apoquentada no corpo inteiro, ela invocava de ralhar comigo até a boca secar. Dizia que se eu continuasse a diminuir dentro das roupas e a deixar o choro vazar entre os dentes quando as luzes da cela se apagavam as mulheres de muita estrada se fariam sabidas da minha frouxidão e eram bem capazes de me mandar ter com a Providência. Quando me mandava tomar tento, acho que a Chica me emprestava uma força que ela escondia dos conhecimentos das gentes, mas existia num anil profundo, quase rubro, como um peixe meio mágico cuja cauda a gente transvê entre os torvelinhos de um riacho genioso. Eu pensava que tanto ela quanto Ana existirem foi a sorte maior que eu dei na vida, tão avolumada que vazava da miudez dos meus caminhos.
Pensar em Ana foi o jeito que eu encontrei de não me alienar das luzes que varavam a pequena janela quando fazia manhã na cela, ou da conversaria no pátio nos dias em que podíamos estirar os corpos no chão e tomar sol nas barrigas, aparentadas com lagartixas. Ela tinha feito promessa jurada que me tiraria dali antes mesmo do meu julgamento em corte, porque o meu crime era de um desregramento assim corriqueiro e os advogados dela não se fartavam de contar histórias de clientes que foram inocentadas por desfazer barriga, que tudo era possível desde que ela pagasse os honorários nos dias corretos, que não sustasse os cheques. Enquanto falava, Ana tinha os olhos presos em mim, acho que antecipava o meu sorriso, o meu choro, qualquer torção de faces ou tremelique que denunciasse a minha sanha de ter esperança, que usasse da mudez para dizer sobre a minha alegria de estar com ela, de vê-la depois de tanto procurá-la em sonhos, mesmo que uma parede de vidro se interpusesse entre nós e as nossas vozes vazassem dos bocais do telefone como serpentes tímidas, num sibilar metalizado, adivinhado em lembrança.
Contrariei o desejo de Ana e não sorri, tampouco chorei – fiz dos olhos anzóis e os enganchei nos dela. Eu disse que não importava que me inocentassem, que me perdoassem os crimes de liberdade, porque atravessar aqueles portões equivalia a não deixá-los jamais. Mesmo fora eu os teria em mim, e o chapisco dos muros se estenderia até o alcance das vistas, eu tatearia essas mesmas paredes em um labirinto invisível que percorreria sozinha.
Eu sou a azarada mais sortuda que existe, sabia disso? Mesmo aqui, nesse pardieiro de expiações, eu encontrei quem me protegesse de mim e me perdoasse as asnices, que, você sabe, não sou poucas. A Chica curte muita parecença contigo, Ana, ela é toda bondade e aspereza, força e candura, sei nem como ainda tá com a gente nesse mundo constipado de vapores negros, certamente emputecido por se sustentar num azul esférico, cansado de perseguir o sol e farto de se repetir nos giros.
Quem é Chica, Lis?
Sabia que durante duas semanas não nos deram água que não a da chuva? O diretor deve ter feito de tudo para que a sede nossa não chegasse aos jornais, ou os jornais que não se comoveram, preferiram dar espaço aos problemas outros do país, como a teima dos velhinhos de morrer e nos roubar as gavetas, ou a recusa dos homens de emprenhar as mulheres aliciadas e o pavor delas de acabarem aqui, com a boca seca e as vistas escurecidas pela sombra do grande muro. As governanças da cidade que se negaram a bombear água para o presídio, talvez não atinassem para a importância de lavarmos nossas calcinhas e sovacos criminosos, ou acreditem que não os merecemos limpos. Os guardas espalharam notícia que os canos todos secaram de súbito, mais uma anti-naturalidade sombria que força o corpanzil virulento para dentro desses portões. Só sei que nos pusemos mais coitadas que de costume. Fui acometida por uns faniquitos que nem sei explicar, como se pensar na sede fosse suficiente para me cobrir de espinhos e rachaduras, assumir natureza desértica. Cê nem sabe, Ana, mas a porquice a que nos sujeitaram era tanta que eu me contorcia toda ao levar a comida à boca no terroso salgado da ponta dos dedos. Cheguei a duvidar se algum dia nos veríamos livres das crostas de sujeira que cobriam os corpos nossos, ou se já havíamos atingido ponto sem retorno e, a partir daquele momento, a vida se encenaria no lamaçal seco dos dias. Era como se, de tanto nos desejarem mudas de corpo e ideias – em imobilidade de planta – os guardas do presídio tivessem se decidido a nos transformar em árvores. Queriam nos cobrir de cascas farelentas, fazer escorrer a seiva, serrar os troncos para assistir ao nosso despencar cândido, corpos nus com raízes expostas. Eu não conseguia dormir. Era acometida por uma vontade doida de raspar as sujeiras no cortante das unhas, de esmagar no duro dos dedos os carrapatos e piolhos que me pinicavam as ideias. No dia em que a coceira rebentou com tudo e tive vontade insana de gritar até explodir os pulmões, segredei à Chica que já não lembrava qual era a cor do meu cabelo. Ela se fez de desentendida, mas deu um jeito de negociar uma barra de sabão com as presas de mais estrada e, no dia em que choveu chuva primeira, ela recolheu os sucos das nuvens em uma bacia de plástico que tirou nem sei de onde. No pátio, lavamos os cabelos embaixo da sombra da única árvore.
Lis…
A Chica não tem quem a defenda, Ana. Corre por aí conversa que ela periga pegar a cadeira, porque as gentes de bem tomaram birra definitiva da cara dela e querem mesmo fritar-lhe os miolos. Você precisa convencer gente importante de intervir por ela, gente de numerosas faces, de longos tentáculos e de dedos acrescidos no poder. Precisa ter com alguém que seja entendida da vontade de quebrar as janelas todas do mundo às vassouradas, alguém capaz de andar sobre o vidro, de cortar os pés.
Quando segredei o meu plano para livrar a Chica da cadeira, Ana fez cara de infâmia e me disse os palavrões preferidos dela, ficou vermelhusca nas faces em imitação à Ana menina, que era gulosa das vontades e percorria parques verdejantes e descampados no arroubo das pernas longas. Com o bocal do telefone enganchado entre as duas mãos, ela ralhou comigo até a voz falhar. Descarrilou a chorar baixinho, dum jeito que nem eu sabia que ela era capaz. Eu a olhei com amor agreste, como se a tivesse desconhecido a vida inteira só para encontrá-la naquele momento, esparramada em si, de súbito inteira, devolvida ao próprio continente, a refluir liquefeita na língua turva das marés, oceânica. Ela parecia mais cansada que Deus.
Eu pensava muito no apartamento de vovó, nos beirais das janelas a acumular poeira, nas traças que tomavam as roupas emboladas dentro das nossas gavetas, na infiltração que se alastraria pela parede onde eu gostava de apoiar os pés descalços enquanto deixava que a cantoria habitual de dona Cléia embalasse a sala em um passado morno, feito de desmaios pequeninos, e me transportasse a um lugar de estranha familiaridade. Aquele apartamento – em que passei tantos anos e para onde voltava quando sentia que estava ameaçada de rumar com os ossos nas quinas da realidade – era meu retrato mais fiel e – fidelíssimo – desbotava nas cores. Dentro de mim, eu visitava o nosso apartamento todas as noites e o encontrava cada vez mais pertencido ao passado, adivinhado em ponteiros de relógios que haveriam de varrer as familiaridades da memória em uma marcha envenenada, impacientes para encobrir os corpos dos prédios de mato e nos envolver a todos em orfandade.
Na sonhação desenfreada das noites era certo que a nossa casa viria ao meu encontro e, assim que eu atravessasse a porta de entrada, os tapetes de vovó se mostrariam um pouco mais emporcalhados que no dia anterior, os formatos das estampas se confundiriam em uma hemorragia una de cores, como se a mobília se perturbasse em uma dança caduca assim que eu afastava olhar e se pusesse imóvel diante de mim em uma mimese imprópria, cismada de aparentar com a realidade sem, no entanto, sê-la. Eu abria as tampas das panelas para encontrar seus fundilhos tomados por crostas de gordura sumarenta, as cortinas do chuveiro se estendiam diante das vistas conspurcadas como a casca de tangerinas apodrecidas, salpicadas de pintas azuis. Florações bolorentas se infiltravam com rapidez de corte nos vestidos de mamãe, ainda pendurados no guarda-roupa menorzinho, do jeito que vovó os pôs para descansar, como se ela estivesse para se decidir a não mais morrer depois de tanto tempo finada e fosse catapultada em nossa direção pelas narinas de um Deus alérgico durante um espirro especialmente forte. Os sonhos não me permitiam lembrar os solfejos preferidos de vovó, nem recriar o delírio vaporoso da presença de Ana, que se avolumava no corpo das tardes e me fazia desejar ver a nós mais uma vez. Deitada de bruços sobre o tapete da sala, ela desenhava os nossos rostos.
Lis.
Que foi?
A Zefinha tá pra endoidar de vez.
A voz da Chica me atentou para o fuzuê do pátio, onde um grupo de mulheres formava uma roda em torno da silhueta da Zefinha, que segurava um objeto pequeno de encontro ao peito e – pela primeira vez desde que apanhou até se apequenar em si – gritava com som.
A conversa é que o rato da Zefinha se pôs doido de fome e invocou de roer a cal do muro até empedrar a barriga. Ficou foi doentinho, o coitado, enamorado de escuros. Olhava para a Zefinha dum jeito que rato nenhum olha pra gente, ele era todo inteligência, estava jurado de espia para as outras bandas. Só o tempo.
Morreu?
E foi. Agora ela tá curtindo viuvez roxa, ficou revoltosa com Deus e abandonou o ‘Ummm’ com que respondia as ofensas todas, se pôs emputecida em definitivo e ralha com Ele por ter permitido que o rato se enfastiasse de cal até empedrar os olhinhos avelã.
Tiveram coragem de fazer troça até da viuvez da Fafinha, Chica?
Coragem foi o que trouxe as gentes todas até aqui, então não duvide do tamanho da bronha dessas mulheres. A sanha principiou porque não é permitido estardalhaço em hora de pátio e a Zefinha chora numa agudez espicaçada, dava para ouvir o berreiro lá da última ala. Deram mando para ela sofrer menos avolumado, mas a diaba nem atenta para a aspereza com que os gritos dela talham a gente, quer mesmo é curtir viuvez direita.
Justo.
Verdade seja dita, Lis, essa cisma do rato de comer cal até empedrar a barriga é de um sinistro absoluto. Parece que ele se acostumou a nos fazer companhia ao ponto de também se acreditar prisioneiro, daí panicou na urgência de soltura, queria roer o muro até o outro lado. Naquele furdunço tem gente decidida a acabar com o atrevimento da Zefinha de enlutar bicho com penúria gêmea de enterrar gente, dizem que esse é o desacato maior contra Deus. Parece que as fulanas daqui viam na amizade dela com o rato ruivo uma afronta das mais garbulhentas, e eu mesma não me faço estranha a esse pensar, porque é como se, ao preferir a companhia do rato à nossa, ela nos dissesse que nem para mulher servimos mais, viramos logo umas ratazanas. O curioso é que nem todas se puseram emputecidas com a viuvez do rato, teve gente que se sensibilizou com o luto da Zefinha e só fez foi endossar o berreiro dela. Agora essas mulheres – emocionadíssimas – querem por tudo protegê-la de levar sova, quiçá brigam com a Providência a punho seco e judiam umas das outras a ponto de nos cobrirem a todas de machucados.
Não demorou até que o primeiro guarda firmasse entendimento do desarranjo das presas e, assombrado pela imagem do rato morto nas mãos da Zefinha e pelos gritos que acompanhavam o seu lamento cavernoso, buscasse o apito com a boca. O moço fardado – prostrado no centro do pátio com as pernas arqueadas – ainda ostentava no rosto sinais de meninice, mas tinha um duro rochoso no olhar que me fez procurar a mão da Chica com a minha. Parecia que ele panicou em muito com a atenção das presas, agora voltada para os seus esforços em insuflar ar para dentro do corpo metalizado do apito. Talvez acreditasse que fazíamos troça silenciosa da sozinhez dele na difícil missão de restaurar a ordem no pátio e, assim, o transformássemos em objeto, penduricalho nas vistas nossas, corpo feito para fruir com os olhos, quiçá tocar. O rapazote se pôs vermelhusco nas fuças e olhou para os lados em aturdimento raivoso quando uma das mulheres dentro da roda vociferou risada. Em uma cólica de corpo inteiro ele levou as mãos ao cinto e sacou o cassetete, com o qual judiou do couro da Zefinha até que ela soltasse o corpo do rato e cobrisse a cabeça com as mãos. Ele a sovava com a mesma disciplina estudada com que eu amassava o pão no calor dolorido dos punhos. Caída sobre o chão do pátio, um lençol carmesim se estirava sob o corpo da Zefinha.
Um grito irrompeu de algum lugar dentro da roda e uma mulher se lançou sobre o moço do cassetete e o derrubou na coronhada do corpo maciço. No rebuliço da queda, duas presas se sentaram sobre os coturnos do guarda enquanto gritavam por reforços para segurarem-lhe as mãos rentes ao corpo antes que fremisse soltura. Quando me virei para encontrar nos olhos da Chica um assombro gêmeo ao que vazava dos meus, uma dor lancinante invadiu a minha tez. Os ossos todos ameaçavam esfarelar na queimação surda da coluna. Grito nenhum vazou da minha boca, porém, sim um gemido que assemelhava em tudo ao ‘Ummm’ da Zefinha. Com a bochecha prensada contra o chão do pátio, percebi que um corpo pesado havia se lançado contra o meu e cravado a sola do sapato sobre as minhas costelas. Respirar me perfurava a carne. Abri os olhos para encontrar dezenas de pares de coturnos a se alastrar pelo pátio em uma perseguição desenfreada às presas. Os guardas sacavam cassetetes e os bramiam diante de si como facas para profundos cortes, enganchavam as mãos nos cabelos das mulheres e as faziam cair de joelhos. Uma constelação de uivos se fazia ouvir antes que as fugitivas tombassem no chão com as mãos sobre as cabeças, uma por uma.
Um filete de mornidão escorreu sobre os meus olhos pouco antes de um estrondo tilintado invadir o pátio. De súbito, a pressão sobre as minhas costelas arrefeceu e pude olhar para cima. Sobre as nossas cabeças, chovia vidro.