[fusion_text]Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Nascem Flores no Asfalto”, de Mariana Lozzi. Leia os outros capítulos aqui.

Chorava tanto. A nova menina tinha a cabeça metida entre as pernas, o corpo inteiro fremia com o chiado do peito abarrotado. Era a primeira noite na cela mais quente de todas, onde, durante o dia, o sol carimbava o chão e as grades de ferro sem trégua até traçar queda lenta e bater ponto nos cocurutos vermelhos. Impregnava presença nos colchões de espuma em que dormíamos com as costas quentes, muito juntas umas das outras, tão perto que um corpo maior nos julgaria pontos de costura entremeados no nó de uma mesma linha, fios finíssimos da mesma tecitura. Talvez, desavisadas, cosêssemos um travesseiro para Deus repousar a cabeça, cansado que se pôs de tanto fazer viagem até a terra para castigar os homens. Em nós Ele não tocava. Conosco, Ele não tinha.
Decerto vai apanhar antes do almoço – meditei, enquanto percorria o pátio ensolarado. Encostadas contra uma das paredes do muro, de cócoras, a filar cigarros amassado, estavam as mulheres de mais estrada. Juntas, como haviam de andar sempre – para que nós, as mulheres de pouca estrada, não caíssemos na besteira de nos engraçar para com sua autoridade –, elas disparavam olhares de deboche e sanha na direção da menina que havia chegado a apenas uma noite. Absorvida por essa coisa trabalhosa que é chorar aos sacolejos, a moça, desavisada de tudo, não se atentou para o perigo que corria, e deitou mesmo nos trilhos da dor, deu corpo e voz ao lamento, que se derramava pelo pátio, trepidava como a alegria mais doída de todas, como a sanha mais linda.
Ninguém além da novata chorava, mas eu invoquei de achar que queríamos todas nos juntar a ela e gritar desembestadas, entregues a uma anti-natureza sombria, zebus escuros jurados de extinção diante de um rio polvilhado por cascos de crocodilos. Não deixei escorrer miúda lágrima que fosse, porém – nem para rememorar a nossa desaventurança, que era coisa cerimoniosa e merecia ser lembrada, nem para lamentar o destino da garota nova, que se afunilava a cada suspiro, causa certa. Mal havia chegado e já sabíamos que, para ela, a noite se faria cedo, quando as mulheres de muita estrada decidissem judiá-la até cobri-la de estrelas.
Percebi, num átimo, que não eram só as presas de mais estrada que tinham a moça na mira do olhar – o choro havia penetrado todos os recônditos do pátio sujo e chamava atenção para si. As mulheres procuravam umas as outras, puxavam-se pelas mãos aos cochichos, apontavam para o adiante, agrupavam-se como se o sol estivesse decido a abrir caminho para as nuvens, que fariam tempestade sobre as nossas cabeças. Algumas das presas se encolhiam, embalavam-se nos braços umas das outras, perturbadas pelo calamitoso que ainda não havia sucedido, mas deitaria sombra certeira sobre a pele da menina caso ela não enxugasse as lágrimas e se aprumasse ligeiro, caso não largasse de sentimentalices e se fizesse mais homem do que os homens lá fora se propagandeavam homens, para levar vida honrada conosco.
Sabíamos que, caso a menina não silenciasse as dores, seria a vez da Providência – como chamávamos a moça maior de todas, que era incumbida pelas presas de muita estrada de nos quebrantar os dedos caso desrespeitássemos a sua sabida autoridade. Em passos lentos, Providência atravessou o pátio para ter com as mulheres que filavam cigarros com as costas prensadas contra o muro. Aguardávamos com as respirações curtas, num torcer de modos muito custoso, como se tivéssemos sorvido a mesma sopa embatumada, colocado para dentro o mesmo caldo ácido. As detentas lançavam suplício mudo à novata, rogavam que ela guardasse o pranto, que se levantasse ligeiro e, a partir daí, só cultivasse capim e hera na gaveta do peito.
Sobre a prisão:
A primeira coisa a se saber sobre a Penitenciária Feminina para Crimes Contra a Maternidade é que chorar é o erro mais fácil e o mais calamitoso que se pode cometer lá. O desalento – língua comum – era um idioma áspero, que percorríamos com as bocas em chispe e as línguas em câimbra muda. Quem acordava com a visita cruel do sol e dormia ninada por gritos motivados por audiências adiada ou sentenças engolidoras de anos sabia que, até quando estávamos metidas em sonhos, a memória encontrava jeitos de ter conosco.
Quando eu desembestava a rememorar o passado, as lembranças atravessavam afoitas o vão das orelhas, atropelavam umas às outras na ânsia de me miserar, de fazer crescer sonhos ao mesmo tempo em que os matava, pomar de frutas envelhecidas – o meu peito. Vez ou outra a Chica menina voltava para mim, sapecava uma piada, corria em torno das pernas de dona Eulália, reclamava fome e cansaço, dizia-se feliz. Quando eu me encontrava criança, a descobrir o mundo com dedos maravilhados, corria para o pátio, arrancava as roupas do corpo e me imaginava a andar em direção do miolo do mar, para ter com a onda negra.
Sobre a onda negra:
Matéria molosa dos maus sonhos, a onda negra se transmutava em chicote tão logo eu a imaginava. Começava assim: elástico alucinado, a água enlaça meu tornozelo.
Era bem sabido por nós – banhistas do meu delírio – que a tal onda só curte fome daqueles que fogem da maré, dos pares de pés que saltam sobre a espuma, rivalizados num só lamento. Cega e delirante, a onda devora o tal tornozelo ao redor do qual se enroscou, mas, como é faminta despudorada, quer o resto do corpo consigo. Enlaça, então, a cintura do banhista, estilhaça seus membros no primeiro coral, embebe os pulmões em água negra. É nessa hora que faz manhã no presídio.
Definitivo, o sol invade a cela e vara as nossas pestanas, joga luz sobre as paredes esburacadas, rouba das baratas o anonimato. Conservo os olhos fechados, mas, a essa altura, estou prestes a descobrir que é tarde demais para não ser, que a memória me quer consigo, que ela já esticou os tentáculos até as minhas miudezas bem guardadas, até as realidades fabricadas – casas mínimas, coloridas e pareadas, guardadas em caixas de veludo. Abandonávamos as vidas a que nos entregamos em sonho e seguíamos para o pátio.
Sobre o pátio:
As mulheres desse presídio são bonecas afogadas, prontas para brincar de mar.
Como?
Tu sempre foi chegada num drama.
É o quê?
Desde menina, Chica, tu gritava alto quando inventava de cair no chão, fazia estardalhaço e me esperava na pose mais sofrida possível, a mãozinha na testa, assim, ó, desse jeito, como víamos na novela, a acusar uma tragédia. Minhas amigas diziam que tu ia virar atriz se continuasse a cair com pompa de rica. Ríamos muito, porque era mesmo engraçado isso de imaginar uma menina pretinha em uma rua de meninas pretinhas dentro da televisão, toda emperiquitada, com pinta de madama, a tombar no chão.
A voz de dona Eulália era a lembrança mais forte de todas. Seria bobice dizer que eu ainda consigo ouvir a risada dela, porque dentro da penitenciária a gente só ouve mesmo o grito da sirene e a bandalheira das presas, mas juro que tento. De olhos bem fechados (talvez porque muito cedo ensinem pra gente que as coisas improváveis acontecem quando não podemos vê-las, para permanecerem improváveis), invoco um zunido na ponta da língua, um Zzzz bem cosquento, e o zunido esquenta o céu da boca e desce até o peito, onde vira um ronronar muito discreto, motor para barcos invisíveis. Então posso ouvi-la.
Quando eu disse que havia emprenhado, dona Eulália abraçou a máquina de costura. Ela suspendeu os braços em torno da carcaça de metal e se pôs a examinar bem de perto a costura da saia azul que remendava, como se desse por falta de algo e procurasse a coisa nos pontos mínimos. Não perguntou quem tinha me metido o filho, porque já sabia. Desde que eu fechara pacto com a tristeza, só um nome cabia na minha boca.
Rafael?
Quê.
Tu fez filho em mim.
Depois do dia em que eu levantei a blusa para revelar a barriga inchada, Rafael parou de atravessar a rua em frente à escola de tênis modernoso só para ter comigo. A saudade – que o guiava ao longo do calçamento estreito, para além das ruas de casas bonitas, para longe das garotas de cabelos lisos – falhou ao trazê-lo de volta para mim, sombra ao meu encalço. Fiquei como que subtraída de mim, da minha concha mais casa, porque, por mais que ele me entortasse os caminhos, até então era coisa certa que ele voltaria para me miserar mais um pouco, e depois disso um pouco mais, até que o nosso filho tivesse consumado a obrigação de nascer. Caso fosse menino – eu pensava – decerto aprenderia com o Rafael a me judiar, mas, se fosse menina, então eu que ensinaria a ela como é isso de amar miséria.
Na rua em que Rafael morava, as casas dos ricos tinham cercas mais altas do que as escadas que seriam necessárias para levantá-las. A dele não era diferente – entre o asfalto e a grama afofada, erguia-se uma cerca altíssima, coberta de laca, com pequenas lanças na ponta, engenharia de guerra, como se a família dele curtisse medo de invasores se catapultarem em direção aos seus sofás e televisões. Modernosa como os tênis que Rafael usava, a casa tinha uma carcaça de vidro, através da qual era possível ver a maioria dos cômodos, contanto que não estivessem segredados por cortinas pesadas ou com as luzes desligadas. Perto da cerca – mas não perto o bastante para que ela me fritasse os miolos – eu esperei.
Na mesma noite, porém, em que decidi que esperaria do lado de fora até que ele olhasse através da janela do quarto e reparasse em mim e no nosso filho não nascido, tive dores nos pés e vontade terrível de ir ao banheiro. Perigada de abaixar as calas ali mesmo, toquei a campainha e, quando um senhor com o mesmo nariz adunco e a mesma mandíbula asteca de Rafael se inclinou para fora da porta de entrada, eu disse que estava prenha do filho dele.
Disse que está prenha DELE? Perguntou uma senhora de cabelos tingidos, que havia acabado de esticar o pescoço para fora da porta de entrada e apontava para o marido com o dedão, atônita.
Dele não, minha senhora, quis dizer foi que estou prenha com o filho do filho dele.
Ter com os pais de Rafael foi de uma inutilidade completa, porque eles me ouviram com paciência, e, quando eu acabei de explicar minha causa, entregaram-me uma caixa de biscoitos, um saco de pão, um galão de leite e me mandaram para casa. Revolvi de raiva nos lençóis até fazer alvorada, coiceava a mandíbula de Deus com gana de feri-lo, e assim ferir a todos os homens, até a dona Eulália, que, dentro de algumas horas, levantaria para encontrar o galão de leite sobre a mesa da cozinha e agradeceria aos santos. Na saída da escola, porém, os solados coloridos dos tênis de Rafael indicaram que a minha aparição na noite anterior foi artimanha suficiente para fazê-lo curtir saudade minha.
Ele abriu a porta do carro. Não sorria, mas conservava nos olhos a mesma qualidade de cascalho. Lassidão e brilho sob o sol branco, pedra para profundos cortes. Eu acompanhava um vira-lata revirar as sobras de um restaurante na esquina quando ele parou o carro, retesou os dedos em nó e deu com o punho na minha nuca. Repetiu o movimento até acreditar que a todas as partes do meu corpo foram dedicadas quantias iguais de dor. Menos a barriga. Nela, ele não tocou.
O tempo todo enquanto ele me puxava pelos cabelos e me esfolava o couro eu só conseguia ter vontade de virar a cabeça, para que ele me visse de frente e me percebesse ali, com ele, para que a cegueira que embaçava suas vistas virasse nuvem e ele entendesse que havia cometido um engano terrível, pois se esquecera que quem havia feito caminho até o banco do carro dele naquela manhã era a Chica, justo a Chica que, naquele mesmo banco, havia chorado de susto quando ele a beijou vezes seguidas e a cutucou no mais fundo.
Com os lábios pintados de sangue, eu saí do carro e andei até chegar em casa. Conservei a cabeça baixa durante o percurso, para que os vizinhos não me reconhecessem e, escandalizados, oferecessem ajuda, ou até, em silêncio tímido, alimentassem vontade de descobrir quem tinha me judiado a punho seco. Caso me vissem emputecida e machucada, decerto espalhariam palavra que, além de ter me emprenhado, o fulano dos tênis modernosos havia me miserado de tudo quanto era forma.
O silêncio da casa dizia que dona Eulália havia saído para entregar as roupas que ela havia cosido durante a semana. Um cansaço embatumado cobriu minhas vistas, a cabeça zunia e eu lembrei que não havia pregado os olhos na noite anterior, porque estava febril, com gana de coicear a mandíbula de Deus por ter permitido que os pais do Rafael – enquadrados pela moldura do portal de entrada, retrato bonito de ver – tivessem me mandado para casa com uma caixa de biscoitos e um galão de leite. Chamaram-me de querida e acenaram adeus. Eu acenei de volta.
Dormi um sonho limpo de imagens, com os pés ainda nos sapatos, o corpo dobrado em um ângulo improvável dentro do uniforme da escola. Quando acordei, pensei ter ouvido a máquina de costura de dona Eulália a entremear o tecido dos dias, do jeito próprio que ela fazia, carretel que traz de volta as manhãs, que reconta o céu em estampas.
Uivos e berros desmancharam a tecitura da memória.
As detentas, agora de pé, faziam estardalhaço com as gargantas. Eu conhecia aquele som. As palmas ritmadas indicavam que Providência havia recebido notícia de um novo encargo, que já a haviam incumbido de ter com a garota nova e que muito rapidamente se poria intencionada a judiá-la sem trégua, até que os guardas invadissem o pátio com apitos e bastonetes.
Tracei alguns passos em direção à garota. Fez-se silêncio.
Menina, não faz assim. Aqui o mais sabido é chorar pra dentro, sabe, chorar transparente. Se fica aí, com a bunda pregada no chão, a gritar a dor de todas nós, criam o hábito de mandar sová-la todos os dias. E adianto: tu não quer isso, porque, se elas te esculacham com uma vez, capaz de tomarem gosto por te amassar a carne. Entende? Apure os ouvidos para isso que te segredo: O bicho homem – que tem mais rostos do que nomes, esconde o Inominável entre as pernas. Por trás dos panos carcomidos por divinas traças, ele ostenta, embaixo da jeba-serpente, uma racha profunda, escura e irreferenciada. O bicho homem também é mulher. Ele tem os meios para parir e para sangrar a cada lua, curte cio silencioso, profundo vermelhusco. Também conhecemos a maldade, menina, não é só porque te cercam de ventres que tu se vê livre do calamitoso predador, não é só porque também fomos miseradas lá fora que não temos gana de miserar aqui dentro. Sabe? Daí tu silencia de vez a voz, viu, menina? Arremata o choro, constrói represa na garganta, e conserva os olhos secos, mas trata de mantê-los abertos, porque, nessa cela, o sol cega – e aqui a cegueira é dom. Qual é o seu nome?
Onde antes havia sol, fez-se sombra. Eu me virei a tempo de encontrar Providência, prostrada atrás de mim, com as duas mãos enganchadas nos meus ombros. Ela me empurrou de encontro à parede chapiscada, mas, antes, ouvi uma palavra.
Lis.