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27 de janeiro de 2016

Meu medo de comer

Muitos olhares desconfiados. Olhares de pena. As pessoas te julgam. Não adianta. Ou te condenam à morte ou acham que é frescura

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O divã hoje é da Lívia Mota.

Mural sobre anorexia na Universidad del Valle de México - Autor: Fernwer
Mural sobre anorexia na Universidad del Valle de México – Autor: Fernwer

P arei de comer. Simplesmente. Parei de comer. Nada mais descia. O prato, cheio, me assustava. A comida me dava aversão. Parei de comer. Não tinha fome. Apetite. Água na boca. Parei de comer e parei de escrever. Parei de comer porque tinha medo. Medo de colocar tudo pra fora. Medo do vômito, basicamente. Parei de escrever porque tinha medo de colocar tudo pra fora. Medo das palavras dos outros, basicamente. Já faz mais de um ano. Começou lá fora ainda. O pânico começou quando morava na Alemanha.

Leia mais: Quando eu sentia apatia por meu próprio corpo

Me casei e fui morar lá. Foram dois anos e três meses. Dois anos e três meses de muitas mudanças. Transformações internas e externas. Dois anos e três meses de muitos desafios. Nunca tinha ficado mais de 100 quilômetros longe da minha família. Nunca tinha ficado mais de uma semana sem ver meus pais. Nunca tinha saído do Brasil. Nunca tinha casado. Tudo era incrível e assustadoramente novo para mim. Diante dessas novidades todas, senti o baque. Um sentimento de tristeza me tomava muitas vezes. No início, parecia inofensiva e passageira. Depois, evoluiu para um desespero. Até que desencadeou esse medo. O medo de passar mal. Um medo que me impedia de comer.

Restaurantes fechados, com muitas pessoas, eram terríveis para mim. Procurava mesas, estrategicamente, próximas ao banheiro. Quando a sensação de pânico vinha, minhas mãos tremiam, meu coração disparava, a garganta parecia fechar. Sentia que ia desmaiar. Então, estar perto do banheiro era minha segurança. Corria pra lá. Respirava fundo. Jogava água na cara. Largava o prato, a ocasião, o momento. Fugia de mim mesma.
Foram dez quilos perdidos. Muitas roupas perdidas. Muitos olhares desconfiados. Olhares de pena. As pessoas te julgam. Não adianta. Ou te condenam à morte ou acham que é frescura. Fiz inúmeros exames. Passei por muitos médicos. E nada. Não tinha nada de errado com meu corpo. Minha saúde física estava em ordem. E eu nunca tive problemas com meu corpo. Eu não comia não por vaidade. Eu não comia porque eu não conseguia. Já no Brasil, procurei um psiquiatra. O diagnóstico foi de depressão, associada à síndrome do pânico. Mas meu medo não era de morrer. Era de passar mal.
Recusei o Rivotril. Aceitei o colo. O abraço. A mesa de bar. Sessões de terapia, yoga e a medicina antroposófica têm me ajudado. Voltei para o Brasil no início do ano passado e estar perto das pessoas que amo tem sido determinante. Comer ainda não é um deleite. Tenho sentido a evolução. Voltar a escrever e conseguir colocar para fora meu drama neste texto é parte dessa evolução. Estou no caminho. E neste meu caminho me encontro cada vez mais comigo mesma. Com minha consciência, com minhas emoções. Com meus desejos, traumas e anseios.
A depressão pode ser encarada de várias formas. Eu decidi encará-la como uma forma de me conhecer de novo. De vasculhar lugares esquecidos. Decidi encará-la com coragem.
Coragem que a gente acha que muitas vezes não tem. Mas a gente só acha. Porque ela está ali, acanhada, mas está ali. Pronta para entrar em ação quando acionada. E todo mundo tem esse botãozinho. Independente da causa, do conflito, do medo, há sempre uma saída. Até mesmo quando se está num buraco negro. 

 

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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