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O desafio da educação em isolamento social

Aulas online impõem uma reestruturação do papel das mães que também são professoras e revelam os desafios das que são analfabetas ou não estudaram o suficiente para poder orientar os filhos

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Quando a pandemia de coronavírus chegou ao Brasil, Magda Sueli Procópio, de 46 anos, estava iniciando uma nova fase: tinha acabado de alugar uma casa para ela e o filho em um lugar estratégico, próximo da mãe, do trabalho e da escola do adolescente. Professora não-efetivada de língua portuguesa na rede pública de São Paulo e mãe de Alexandre, de 14 anos, ela se viu em uma corda bamba, sem saber se conseguiria manter o salário. 

Magda integra a categoria “O”, isto é, só é contratada depois da distribuição de aulas entre os professores efetivados. Por enquanto, ela está conseguindo manter o salário, mas a aprovação pelo Senado da medida provisória 936/2020, que permite ao governo prorrogar os prazos máximos dos acordos de redução salarial por mais de 30 dias e de suspensão dos contratos por mais 60 dias, pode abalar sua condição financeira.

“A gente idealiza um sonho, mas às vezes ele acaba virando um desgaste emocional”, lamenta a professora, que precisou se reinventar para manter a sanidade em home office: “No começo  obviamente foi mais difícil, mas agora tenho meus horários, tanto de trabalho quanto com meu filho, para me manter bem”.

Por si só, o regime de trabalho de Magda Procópio já é precarizado, uma vez que professores temporários possuem contratos válidos pelo período de um ano. De acordo com a advogada Lazara Carvalho, diretora-executiva do Instituto da Advocacia Negra Brasileira e vice-presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP, acaba sendo muito mais barato para a administração estadual contratar um professor por prazo determinado, limitado ao ano letivo, sem registro na carteira de trabalho e sem recolhimento do FGTS. Nestes casos, como ocorre com Magda, o salário é composto apenas pelas horas trabalhadas.

Com as aulas virtuais – que começaram em 13 de março e ainda não há previsão de acabar – adotadas durante a pandemia, o trabalho aumentou. A preparação da aula, que poderia durar entre uma ou uma hora e meia, agora consomem três horas de trabalho porque inclui gravação, edição de vídeo e adequação do conteúdo para o contexto dos alunos. No momento, a professora dá aulas para cinco turmas, cerca de 180 alunos do ensino fundamental em uma escola de Santo André (SP), e, entre a plataforma das aulas, e-mails e Whatsapp, ela não tira os olhos de Alexandre, que está no 9º ano, último série do ensino fundamental. 

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Se no início ele estava animado com o estudo online, agora já demonstra mais cansaço tanto pela quantidade de aulas e atividades quanto pela disciplina necessária para estudar pela internet. Segundo Magda, “ao mesmo tempo em que a gente precisa usar essa tecnologia, nem sempre ela acaba ajudando. Ela confunde. Todo mundo ainda está aprendendo, estamos engatinhando para depois conseguir levantar e se equilibrar para conseguir usar esse novo formato”, afirma Magda Procópio.

Mãe e pai “duas vezes”

Além dos casos de desânimo, a atenção é mais especial para estudantes que vêm de contextos de violência doméstica, familiar e/ou são portadores de deficiência. Casos de automutilação e estresse pós-traumático, que já foram vistos e cuidados presencialmente por Magda Procópio e outros professores, agora fogem aos olhos. “Quando falamos também de ser mãe solo, o que é essa mãe? É ser mãe e pai duas vezes. Eu me faço ser importante na vida do meu filho e dos meus alunos”, conta.

Essas professoras são os rostos do ensino público paulista e são elas que, muitas vezes em um contexto escolar presencial, passam maior parte do tempo com as crianças e jovens. Em São Paulo, onde está localizada a maior rede de ensino público do Brasil, 64% dos docentes são mulheres, são mais de 5.700 instituições de ensino (fundamental, médio, técnico e educação de jovens e adultos) e 1,4 milhão de alunos matriculados, com 205 mil docentes, de acordo com dados do microcenso de 2016 da Secretaria de Educação do Estado. 

Para quem ensina crianças no período da primeira infância, a atenção é ainda maior, diz Brunna Martins, de 28 anos, que é neuropedagoga, professora de ensino infantil e mãe de Sara, de 3 anos. “Nesse estágio de desenvolvimento da criança, ela precisa do toque, do cuidado da professora. Mesmo os pais do lado, quando não estão trabalhando, não substituem a professora dentro de sala com o aluno”, pontua.

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No dia a dia, precisando de mais silêncio em casa para dar as aulas ao vivo, deixar a filha mais tempo com o celular foi uma decisão difícil, porém necessária: “A gente luta para que isso não aconteça, mas, por exemplo, algumas atividades ela não consegue acompanhar porque, no mesmo período, eu estou dando aula, então, a preferência naquele momento é para o trabalho, porque é ali que sai o sustento e vai garantir o mês”. 

Desigualdades acentuadas

Na outra ponta dessa nova dinâmica escolar, estão as mães que, de uma hora para outra, viram-se diante do desafio de ter que assumir ou acompanhar mais de perto a educação dos filhos. Neste cenário, o fechamento das escolas, imposto pelo isolamento social, significa mais do que ter crianças em casa 24 horas por dia. 

Segundo dados do Censo Escolar, em 2019 havia 47,9 milhões de alunos matriculados na educação básica (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) em todo o país, nas redes pública e particular. Embora a saída para que os alunos não perdessem o ano escolar tenha sido principalmente as aulas online, a realidade brasileira mostrou que os obstáculos para um aprendizado igualitário são muitos, e para as mães que pararam de estudar há muito tempo e/ou têm nível de escolaridade mais baixo, o desafio é ainda maior. 

Este é o caso de Sueli Maria dos Santos, de 39 anos, que vive com os filhos em Camilópolis, Santo André, região metropolitana de São Paulo. Cuidadora em uma escola particular, ela parou de estudar aos 16 anos e tem dificuldade de criar uma rotina de estudos em casa para alfabetizar e ensinar as atividades que chegam pela escola de forma online para o filho mais novo, Davi, de 8 anos: “É difícil assimilar a lição para conseguir passar para ele”, diz.

Além de terem se transformado em “professoras” de uma hora para outra, as mães enfrentam o desafio de, também repentinamente, terem que oferecer aos filhos um acesso adequado à internet para que seus estudos não sejam ainda mais prejudicados. E, neste ponto, as desigualdades mais uma vez são determinantes. De acordo com a TIC Domicílios, estudo feito anualmente pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), embora 70% dos lares em áreas urbanas estejam conectados, as diferenças ao se analisar as classes sociais são gritantes: entre os mais ricos (classes A e B), 96,5% das casas têm sinal de internet; já nas classes D e E, 59% não conseguem navegar na rede. Entre a população cuja renda familiar é inferior a 1 salário mínimo, 78% das pessoas com acesso à internet usam exclusivamente o celular. Segundo o IBGE, a cada 100 mães solo, 21 negras e 14 brancas não têm acesso à internet.

Aulas só pelo celular

A escola de Davi criou um grupo no Whatsapp para os diretores e professores se comunicarem com os pais e para enviarem as lições para os responsáveis dos alunos. Além disso, enviou material de apoio e atividades complementares, mas Sueli dos Santos só ficou sabendo do fechamento da escola por conta do isolamento social pela televisão. “Todo esse sistema de comunicação surgiu depois. Todos deveriam repetir de série este ano, é a melhor forma”, afirma ela, que tem encontrado como solução recorrer às filhas mais velhas, Giovanna e Sanara, que já terminaram a escola, para ajudar Davi a fazer as atividades.

Para a empregada doméstica Maria Alcione de Noronha, de 51 anos, a desigualdade no acesso à internet é mais um obstáculo na educação do filho mais novo. Analfabeta, ela mora com os dois filhos (Amauri, de 23 anos, e Alan, de 14) em Paraisópolis, região sul de São Paulo. Alan está no 9º ano e é bolsista em uma escola particular, em que as aulas estão acontecendo de forma online. A família não possui computador e as aulas, de segunda a sexta-feira, das 7h às 12h30, são assistidas pelo celular.

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“Eu nunca tive acesso à escola, não sei nem assinar meu nome, então, não consigo ajudar ele nos deveres de casa”, lamenta. 

Alan estuda com o material fornecido pela escola e segue realizando os deveres de casa sozinho, pelo celular. Uma realidade de muitos alunos durante a pandemia. Para Maria Alcione, um alívio, mas também uma tristeza: “Graças a Deus o Alan sempre realizou as tarefas sozinho, mas, às vezes, fico triste por não poder ajudar”.

Desemprego não desobriga os pais do pagamento da pensão |Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

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