Hoje o Divã d’AzMina não é apenas da estudante de jornalismo da Unesp Flávia Gândara Simão, é de todas as mulheres que sofrem espacamentos, humilhações e morte nas mãos de uma Polícia Militar que é treinada para bater primeiro e fazer perguntas depois.
Aqui, n’AzMina, publicamos este relato com a consciência de que foi preciso que seis estudantes universitários fossem espancados para que isso chegasse ao conhecimento da imprensa. Não deveríamos precisar disso, deveríamos estar a postos em todas as periferias e favelas do Brasil. Estamos abertas a relatos de violência policial contra mulheres SEMPRE e abrimos o canal pelo email azminaresponde@azmina.com.br. E damos a voz a Flávia com um pedido de perdão a todas as mulheres da periferia por quem ainda não fizemos o mesmo.
Da Redação
Era noite de domingo quando conheci a Polícia Militar do Estado de São Paulo. Assim como uma profecia, se concretizou! Interessante é perceber como essa frase “você vai conhecer a Polícia Militar do Estado de São Paulo” foi uma das primeiras frases proferidas pela voz de um dos policiais ao primeiro garoto (que mais tarde seria chamado pelos mesmos de ‘careca’) que saiu para atender à viatura. Mal sabia ele que minutos adiante seria vítima de um espancamento a golpes brutais.
Ainda não havia o caos, a cena de guerra não estava armada. Mas os homens sabiam e diziam para o que tinham vindo.
– Qual é a denúncia?
– Estamos aqui porque denunciaram que o som estava alto
Tentando dialogar e explicar que já havíamos desligado o som, meu amigo percebeu que as intenções dos homens fardados não eram as melhores.
Praticamente não houve diálogo:
– Vamos entrar na sua casa.
– O senhor não pode entrar aqui, o senhor não tem mandado.
– Você está querendo dizer que sabe das leis melhor do que eu?
– Eu não conheço as leis, senhor, mas sei que o senhor não pode entrar na minha casa sem mandado ou flagrante.
Voz de prisão nele. Por qual motivo? Desacato à autoridade.
Sabendo que não podia ser preso sem identificação, o garoto, caminhando para a residência para pegar seu documento de identidade (afinal, a partir de quando entrasse naquele camburão, seu destino, como muito já visto em vários casos, poderia se tornar incerto ou seu corpo, irreconhecível), já recebeu chutes do policial no portão.
Reforços foram chamados. Mais dois garotos saíram da casa para entender o que estava acontecendo.
Duas ou três frases de cada lado, chave de pescoço, rasteiras, chutes e socos. E os reforços não paravam de chegar. Nessa hora deveriam estar em cinco ou seis viaturas.
Cinco ou seis viaturas para uma denúncia de som alto, num churrasco universitário de 30 pessoas, por volta das 22h30 do domingo.
Pessoas foram saindo da casa para entender o que estava acontecendo, mas a cada um que cruzava o portão para a linha da calçada, uma viatura nova chegava. Ao todo, 11 viaturas e mais uma da Força Tática.
Bomba de efeito moral! Mais chutes e socos! Spray de pimenta! Estudantes gritando por desespero, estudantes sendo arrastados pelas calçadas.
Eis que um dos homens fardados diz:
– Eu quero aquele careca. Cadê o carequinha?
Proferindo a frase, este e mais três policiais começaram adentrar a casa a procura do tão marcado ‘carequinha’. Entraram pelo portão.
– Vocês não têm mandado! Vocês não têm mandado! Não podem entrar aqui! – eu e mais amigos dizíamos. Foi quando num momento de total violência descabida e cruel, um dos homens fardados, com arma em punho, me olhou nos olhos e não disse se quer uma palavra. Seu sangue provavelmente pulsava pelos seus dedos numa ambição por tortura, desespero e vítimas.
Um tiro foi disparado, a menos de dois metros de mim. Me acertou em cheio! O sangue aparecia em marcas circulares, mas a dor não se fazia presente. O medo, o desespero, o terror, a violência e a crueldade sim.
Mulher, estudante, vítima de uma arma de elastômetro calibre 12, de quase um metro de comprimento, por um homem fardado. Por um homem! Fardado!
A adrenalina era grande demais para parar de lutar.
– Você não pode atirar! – disse um amigo.
O mesmo policial, num ímpeto de justiceiro falido com mãos de assassino, se aproximou mais e, a menos de um metro, atirou a queima roupa na perna desse amigo que tentou me defender. O buraco foi praticamente do tamanho de um dedo e, no meio da madrugada, recebeu sete pontos a mais para marcar a pele.
O policial seguiu vindo para cima de nós. Eram muitos golpes com cassetetes em várias partes do corpo do meu amigo e até de uma menina que estava do lado e pedia calma. Também vítima, foi atingida com um golpe de cassetete na cabeça, que lhe rendeu um grande calombo por entre os fios de cabelo.
Inocente seria eu em achar que apenas uma bala de borracha bastava para mim diante de todo aquele cenário amedrontador. De repente, o policial deixou de acertar meus outros amigos, se afastou, levantou o cassetete prestes a dar um golpe semelhante a rebatedores em jogos de beisebol. Deu um passo e me acertou pela segunda vez. Sorte a minha ter virado as costas para aquele ato tão covarde e me restar, apenas, uma marca muito pronunciada e sangue na parte de trás do me corpo. Poderia ser pior. E tudo em questão de segundos.
– Você bateu na minha amiga! – gritou uma menina que estava ao meu lado.
Ouvindo aquela frase e todos os pedidos de calma que eram desesperadamente gritados por meus amigos, fui tirada de lá, aos prantos, e levada para dentro da casa. A dor alí não se fazia presente, mas o choque e a adrenalina eram maiores do que qualquer sentimento.
O choro não parava. Era desespero, era humilhação, era tristeza por ver a cena que se instaurou por Policiais Militares que são preparados para lidarem com a guerra e não com churrascos de domingo.
Da janela continuei assistindo todo o ocorrido, amparada por muitas pessoas que queriam me ajudar com os ferimentos. Um caroço subiu nas minhas costas, meus pés, roxos e atingidos, latejavam.
Ao som de muitos ‘calma, moço! Calma, moço’ mal sabia eu que, logo diante de mim, fora do portão da residência em que estava, mais amigos estavam sendo agredidos brutalmente.
E um dos policiais que invadiu a casa não desistiu: entrou até a cozinha e com as veias saltando de seu pescoço, gritava incessantemente:
– Cadê o carequinha? Cadê o carequinha?
Eis que viram o carequinha. Acredito que grande parte do Brasil também viu o carequinha quando os policiais conseguiram, finalmente, depois de muita pancada, colocá-lo dentro do camburão.
Hoje, o carequinha tem seu rosto desfigurado.
Ameaçaram-no de morte dentro do camburão, deram voltas e mais voltas com ele tendo um ataque de asma, até que viram que a situação era grave e o levaram ao hospital da cidade de Bauru.
Quatro amigos detidos em camburões, ameaçados, amedrontados, sem saber se iam conseguir ver rostos de pessoas conhecidas novamente. As ameaças eram muitas, a brutalidade, maior ainda.
Eu e mais dois amigos que estavam sendo levados pela polícia demos entrada quase na mesma hora no Hospital de Bauru. As pessoas nos olhavam de forma assustada, haviam policiais do lado de fora e os funcionários do hospital não nos deixavam conversar em mais de duas pessoas porque alegavam que estávamos causando tumulto.
Liberados, seguimos para fazer o B.O.
Seis vítimas.
Teve bala de borracha, teve spray de pimenta, teve bomba de efeito moral, teve espancamento. Teve cena de guerra na república Risca-Faca em Bauru.
E como haviam prometido, nós conhecemos a Polícia Militar do Estado de São Paulo. Essa polícia que mais mata no mundo, que entra nas favelas e comente chacina, dia sim e dia também. Essa polícia que segue impune por cada gota de sangue que derrama, por cada ser humano que destroi. Essa polícia que tortura, física e psicologicamente. Essa polícia ensinada para tratar pessoas como inimigos. E numa hora dessas, quem é que nos defende?
“Muito prazer!”, nos disse a Polícia Militar do Estado de São Paulo naquele domingo.