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15 de setembro de 2016

“Achei que nunca ia acontecer comigo, mas fiz um aborto”

Para mim, foi o resultado de um processo em que estive muito pouco presente. No fundo, o tal “não vai acontecer comigo” é o sofrimento calado que a sociedade machista impõe as mulheres.

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“Pior que não lembro exatamente em que mês foi e confundo o ano. Jogo tudo num mar meio confuso de ‘fase’ e finjo que as coisas já mudaram muito. De qualquer forma tinha 22 ou 23 anos, já trabalhava e ganhava meu dinheirinho, gasto em cigarros, boteco e roupinhas, como toda moça de classe média que ainda mora com os pais.

Isso mesmo, branca, de classe média, estudante de universidade pública boa, que estudou nas melhores escolas, teve brinquedos educativos e toda a conversa (ou o que achamos que é a conversa) sobre educação sexual. Mesmo assim, depois de mais de seis meses de sexo desprotegido com meu namorado, um garoto ainda alguns anos mais novo que eu, engravidei.

Por que logo esse “mesmo assim”? Porque foi a primeira coisa que me passou pela cabeça, a vergonha de ter preenchido as estatísticas mesmo me achando muito educada ou informada. Mas a verdade é que o velho “não vai acontecer” comigo acaba preenchendo o espaço de qualquer real informação na cabeça da maioria das pessoas. Já tinha visto informações sobre gravidez na adolescência? Sim, muitas, assustadoras. Usei camisinha em todas as relações sexuais que tive na adolescência? Não, deixei rolar muitas vezes e torci para que ‘não fosse acontecer comigo’.

Talvez isso seja o mais produtivo para se falar em um relato do meu ponto de vista, social, ao menos.

Como, na realidade, estamos todas muito pouco preparadas para escolher de verdade o que acontece em nossas vidas, em nosso corpo. O resto não teve muito segredo.

A educação que tive também assegurou que eu tivesse dimensão dos recursos, do amor, do tempo, da preparação e da vontade necessárias para se ter um filho. Não reconheci nada disso na minha vida naquele momento. Me perguntei muitas vezes sobre a vontade, me imaginei com um filho, mas a imagem formada sempre mostrava uma outra pessoa da que eu era no presente.

Me via mais madura, mais segura e com alguém que me desse mais segurança ao lado. A imagem minha com um bebê também era logo apagada por futuras-memórias, como em fotografias, de uma vida que perdia possibilidades de acontecer, admito. Mas por quê não admitir?

A decisão, na verdade, foi quase que instantânea.

Me invadiu a exigência de que essa fosse uma decisão minha. Sob a qual não tinha que dar muitas explicações – que não tinha direito – ou ainda, ouvir outros pontos de vista (a maioria hipotéticos, claro). As pessoas sempre tentam oferecer conselhos multilaterais nessas horas, mas a verdade é que é preciso um bom silêncio para ouvir seu coração. E o meu disse: não.

Dali pra frente, não dei muito espaço para todos os ‘se’ ao meu redor, ou ainda para todos os sentimentos que entraram em avalanche enquanto eu segurava a porta fechada. Não quis sofrer. Talvez não tenha sofrido muito; talvez. Mas de alguma forma, me recusei a sentir o que o mundo achava que era esperado de mim sentir.

Tinha plena ciência de minhas opções. Queria interromper a gravidez. Falei com poucas amigas e consegui o telefone, uma consulta, uma conversa com um médico bom e atencioso. Me examinou, confirmou o número de semanas, me perguntou se estava em um relacionamento. Me cobrou uma bela grana, em dinheiro. Me explicou todos os detalhes do procedimento, me informou dos riscos e perguntou o que eu estudava. F

iz um procedimento de 15 minutos que deixou de resquícios apenas uma tontura, da anestesia geral (que tive a impressão de ser desnecessária a não ser por questões criminais/políticas, me corrijam se estiver errada), um leve sangramento de algumas horas que nem encheu um absorvente, um enorme cansaço e uma, também enorme, dívida.

Não recorri aos meus pais, e sequer contei para eles, pela vergonha de admitir que havia feito tudo aquilo que eles me deram todas as ferramentas para não fazer, além da certeza de que isso os machucaria de uma maneira que eu nunca quereria os machucar; coisa meio covarde, eu sei.

Juntei os vários mil reais com amigos queridos, poupança, salário e um pequeno empréstimo no banco.

Mas o que quero dizer quando digo “o mais produtivo” a se dizer na minha situação, é por que tenho plena certeza de meus privilégios, assim como, hoje, tenho muito mais noção do que acarreta ser uma mulher. Sem demagogias, fiquei um pouco satisfeita com o decorrer simples da minha (quase) não-traumática experiência, e nos meses que se passaram me corroeu uma profunda raiva de que todas as mulheres não tivessem acesso a essa possibilidade, e que fosse reservada a mim, uma burguesa educada que não usou proteção por displicência, a capacidade de optar ou não por ter um filho. Tive (e talvez ainda lute com ela todos os dias) muita raiva de mim mesma. Do sistema. Do mundo.

Foi preciso um pouco de tempo para reconhecer a ideia de que não fui autoritária ou insensível na minha decisão. Mas que tenho direito sob o meu corpo e que era sim o mais responsável a se fazer. Mas é preciso mais tempo ainda para admitir os motivos da displicência em deixar acontecer. Os motivos por trás de muitos anos de uma vida sexual masculinizada, em que ser uma mulher libertada é ser a mulher que ‘topa tudo’, que não traz problemas de contracepção – se cuida sozinha, ou se preocupa sozinha – à relação, que ainda aguenta a pergunta “é meu mesmo?” e é obrigada a responde-la por que né? Deu pra muitos.

Para mim, foi o resultado de um processo em que estive muito pouco presente. Tanto em conhecer meu corpo, saber do que gostava, quanto em saber o que me incomodava ou preocupava numa relação sexual. Um processo que começa com a perda da virgindade cedo, para um namorado mais velho que faz pressão para que aconteça. Que se segue por uma adolescência em que a liberdade sexual vinha através de muitas situações incômodas, desconfortáveis psicologicamente e fisicamente com parceiros com quem tinha pouca intimidade. De namoros com muita mentira, da minha parte e para mim mesma, do que poderia acontecer se não nos cuidássemos.

Não dá para comparar as consequências do machismo expresso nas relações heterossexuais para mulheres pobres, negras, periféricas e para as brancas, educadas e de classe média como eu.

Tenho noção de que não sofri as piores violências, físicas ou verbais, mas de qualquer forma, demorou um tempo para que não me culpasse sozinha por ter engravidado.

Para que entendesse melhor que todas aquelas idas à ginecologistas higienistas – que botam meninas de 15 anos para fazer papa-nicolau semestral, exames invasivos, perguntas inquisitórias – mais a falta de espaços para conversas sobre os assuntos com mulheres mais velhas, amigas ou minha própria mãe, tiveram efeito enorme sobre mim. Que a pornografia, os estereótipos, o medo de dizer ‘não’ quando se espera que diga apenas ‘sim’, são avassaladores para uma mulher. Que o tal “não vai acontecer comigo” é o sofrimento calado que a sociedade machista impõe às mulheres.

Torcemos sozinhas, chorando no banheiro ao ver que a menstruação não desceu, pensando em como falar para alguém e em como sequer considerar a realidade, porque a tal autonomia sexual feminina é pintura para um belo de um isolamento. Você se pôs aqui, agora se tire dessa situação. Frase muito cruel e muito corriqueira quando se trata de gravidez indesejada.

Tudo aconteceu antes de “feminismo” sequer existir no meu vocabulário. Mas talvez tenha sido um disparador. Pois uma das únicas coisas que me deu conforto, no processo solitário do banheiro até a maca, e depois até a eventual mesa do boteco em que resolvi afirmar “eu já fiz um aborto”, foi a rede de mulheres que se desvelou à minha volta. Todas conheciam alguém. Muitas já fizeram um aborto também. Todas contaram alguma história, tranquilizante ou desesperadora, mas verdadeira. Algumas amigas, conhecidas, amigas da minha irmã, se prontificaram para conversar. Me tranquilizaram e me disseram “qualquer coisa, estou aqui”.

E só por isso tive vontade de escrever esse relato. De lá pra cá, algumas amigas e conhecidas encontraram em mim alguém para conversar sobre isso, para ajudar quando necessário, porque tive vontade de dizer para não se culparem tanto como me culpei, ou ao menos que tentassem enxergar alguma origem nisso tudo e daí pudessem se transformar. E para que não se sentissem tão sozinhas. Mesmo que, temo, isso ainda seja como uma utopia para a maioria das mulheres.”

O Divã de hoje é anônimo.  

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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