Guarde este número: uma em cada cinco mulheres de até 40 anos de idade fez pelo menos um aborto na vida. Uma em cada cinco. Sim, é muita mulher. Por isso a expressão “todas conhecemos uma mulher que já fez aborto”. Quem é ela? A mulher comum, qualquer uma, mas também uma de nós. Mãe, avó, irmã ou filha. Adolescente imatura ou mulher decidida, prostituta ou iniciante no sexo. As mais ousadas já estamparam o rosto em revistas e disseram: “Eu fiz um aborto.” Isso foi capa de revista dos anos 1990. Hoje, recomendo cautela ao se confessar em público, pois os vigilantes da moral estão ávidos por denunciar mulheres. Mas há um jeito seguro de ecoar as vozes desta multidão: basta que cada uma de nós repita as histórias que conhecemos como de outras, das mulheres próximas de nós. Basta dizer: eu conheço uma mulher que já fez aborto.
Eu conheço muitas mulheres que já fizeram aborto. Posso falar tanto sobre elas, em particular, sobre como sofreram com o medo da clandestinidade.
As mulheres não temem o aborto, pois estão decididas a fazê-lo; elas também não enlouquecem após o aborto – ao contrário, sentem alívio. Elas se apavoram com a ilegalidade, com a ameaça de cadeia, com o horror de quem as acusa de besta-fera.
Algumas mulheres me contaram sobre seus abortos quase no instante em que o segredo se foi do corpo. Como professora em sala de aula, já ouvi dezenas de relatos das próprias mulheres ou de seus companheiros. Já li confissões por e-mail, cartas sem assinatura, já atendi telefonemas de mulheres desconhecidas. Todas contam porque sabem que há anos sou escutadeira de histórias de aborto. Elas contam para me explicar como fizeram, o que sentiram ou por que fizeram. Mas contam, principalmente, porque sabem que serão acolhidas, não precisam temer o julgamento, o pecado ou a prisão. Elas contam porque aborto é um assunto de mulheres.
As mulheres sabem fazer aborto. Muito antes de o comprimido de Citotec ser descoberto como pílula abortiva, chás, ervas, agulhas, bacias ou curiosas rondavam a vida das mulheres para ajudá-las a interromper gestações não planejadas. Há muito tempo, as mulheres arriscam a vida em abortos inseguros e clandestinos. Muitas mulheres já morreram pela ilegalidade. Eu me arrepio imaginando o desespero de uma jovem mulher, sozinha e escondida em uma clínica clandestina, sangrando até morrer. Elas não morreram porque o aborto é um procedimento médico arriscado: elas morreram porque o aborto, ao ser ilegal, foi realizado em condições inseguras.
A verdade é que o aborto não deveria sequer ser considerado um ato médico, mas uma decisão íntima de cada mulher com acesso informado e seguro aos medicamentos. A informação garantiria o uso seguro e protegido de doses e formas de aplicação dos medicamentos.
Se o aborto é um procedimento simples de saúde, a dificuldade está no patriarcado abusivo e controlador que o transforma em crime. O aborto é um crime porque os homens de religião e os senhores de toga assim decidiram. Quando os descrevo como homens, há um senso histórico fidedigno no gênero do poder que fez do aborto o crime, mas há também um senso de como o poder se move – é muito difícil para as duas únicas senhoras de toga da Suprema Corte brasileira revolucionarem o patriarcado. Elas podem, é verdade, mas precisam de todas nós contando histórias de aborto como histórias da vida das mulheres comuns. Todas nós conhecemos mulheres que já fizeram um aborto e elas são tão comuns que podem ser nossas queridas avós.