Você sobreviveu aos seis meses da pandemia com este pandemônio do desgoverno brasileiro? Já voltou ao trabalho presencial? Conseguiu visitar a família? Retomou os estudos? Eu ainda não! Como jornalista com deficiência física, estou entre o grupo de risco para a covid-19 e entrevistei várias mulheres com deficiência que relataram situações graves de violência e apagamento social.
Justamente por estar entre o grupo de pessoas com maior vulnerabilidade, mesmo com todos os cuidados para evitar ao máximo a contaminação pelo coronavírus, grande parte de quem tem alguma deficiência ainda permanece em isolamento social, sofre os piores índices de violência e está completamente abandonada pelo poder público para conseguir voltar aos estudos e/ou ao trabalho com segurança.
Desde 1992, o dia 21 de setembro é marcado como Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência. Uma data que deveria servir para apontar os avanços em relação aos direitos humanos das pessoas com deficiência. Porém, mais de 30 anos depois, a situação só piora, principalmente em relação aos altos índices de violência. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, pessoas com deficiência são 1,5 vez mais propensas a serem vítimas de violência do que aquelas sem deficiência. E as mulheres com deficiência correm risco três vezes maior de sofrer estupro.
Além disso, pessoas com tetraplegias, paraplegias, doenças raras como a esclerose lateral amiotrófica e a atrofia muscular espinhal, entre outras deficiências que acarretam maior comprometimento físico, muitas vezes precisa do cuidado do outro para simplesmente sobreviver. Além da agressão física, passam por coerção econômica, intimidação, manipulação psicológica e negligência de cuidados básicos!
Eu me questiono: em pleno 2020, por que ainda precisamos defender os princípios básicos que protegem a vida das pessoas com deficiência? Já não devíamos ter superado isso? Por que a sociedade continua a ver as vidas das pessoas com deficiência como valendo menos do que pessoas sem deficiência? Definitivamente: não estamos no mesmo barco!

Opressão às mulheres com deficiência é agravada na pandemia
Se as necessidades específicas das mulheres muitas vezes são desconsideradas socialmente, a realidade das mulheres com deficiência é ainda mais negligenciada. E em tempos de pandemia, a situação piorou. Em agosto, eu assisti Deborah Prates (mulher com cegueira), presidente da Comissão da Mulher do Instituto dos Advogados Brasileiros, falar sobre o preconceito que a sociedade possui em relação às pessoas com deficiência, em especial, o que é vivenciado pelas mulheres:
“Quero reforçar a opressão e a violência simbólica que vitima o corpo da mulher com deficiência. Esses corpos são vistos, muitas vezes, como meros objetos. A verdade é que a sociedade vê no corpo das pessoas com deficiência apenas uma coisa, um corpo, um vazio. Nós estamos aqui para dizer que não, somos iguais temos nossa dignidade, nossa autonomia e precisamos ser tratados igualmente. As mulheres com deficiência já se levantaram e estão aqui para dizer que basta de tanta opressão”.
Durante a mesma videoconferência, realizada pela OAB junto com a Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência de Piauí, a subprocuradora-geral do trabalho, Maria Aparecida Gugel (mãe de jovem com deficiência intelectual), também falou sobre os impactos da covid para as pessoas com deficiência:
“As mulheres e as meninas com deficiência estão ainda mais sujeitas a uma maior violência e a exploração. A Lei Brasileira de Inclusão diz que nas situações de risco, emergência ou estado de calamidade pública, a pessoa com deficiência é considerada como vulnerável. O poder público, então, é responsabilizado para que possa promover a segurança dessas pessoas. Acredito que a falta de acessibilidade é o que torna as pessoas com deficiências ainda mais vulneráveis. Portanto, incluir garantindo condições de educação e trabalho dignas é essencial”.
Leia mais: Qual o lugar de fala das mulheres com deficiência?
Ano passado, eu já havia alertado aqui na minha coluna para o abandono e invisibilidade que mais de 10 mil pessoas com deficiência institucionalizadas passam, segundo relatório de 2016. Fico imaginando como elas devem estar durante a pandemia. Se é que conseguiram sobreviver! Pouquíssimos governos (municipal, estadual ou federal) divulgam dados sobre as condições dessas pessoas que de tão isoladas e silenciadas, sequer conseguem denunciar abusos cometidos com elas diariamente!
Em 30 de junho, a imprensa divulgou imagens da situação enfrentada por pessoas com deficiência internadas em instituições supostamente criadas para cuidar dessa população, mas que são, na verdade, casas de tortura e humilhação. Duas dessas clínicas que funcionavam de maneira irregular em Parelheiros (SP) foram interditadas pela Polícia Civil durante a Operação Hefesto, que investiga denúncias de violência contra homens e mulheres aprisionados nessas instituições. As clínicas já haviam sido interditadas pela Coordenadoria de Vigilância à Saúde no dia 17 de junho, mas continuavam funcionando.
Violência contra pessoas com deficiência aumenta no mundo
Nathaniel Julius foi baleado sem razão e morto pela polícia depois de não conseguir responder a perguntas dos policiais. Ele era um jovem de 16 anos com síndrome de Down e foi assassinado dia 26 de agosto no Parque Eldorado, na África do Sul. Segundo a família, Nathaniel estava animado com a chegada da polícia no bairro onde morava na periferia de Johanesburgo. Correu para perguntar aos oficiais o que eles estavam fazendo. Os policiais alegaram não ter entendido o que ele queria, e disseram para Nathaniel ir embora. Como ele não foi, o policial foi até a viatura, pegou um rifle e irresponsavelmente atirou duas vezes no rapaz.
Os policiais colocaram o corpo na parte de trás de uma van e levaram para o hospital, onde Nathaniel chegou morto. A polícia declarou que ele foi atingido no meio de fogo cruzado, mas não houve violência de gangues na ocasião. Várias testemunhas relataram que os policiais voltaram ao local para encobrir o sangue e recolher as cápsulas das balas. O policial foi preso e sua fiança foi negada. Uma petição online chama atenção para casos de violência contra pessoas com deficiência e pede justiça.
No Brasil entre abril e junho, houve um crescimento de 346% na apresentação de novos casos de violência. Só entre janeiro e maio deste ano foram 940 relatos de violência registrados na 1ª Delegacia de Polícia da Pessoa com Deficiência.
“O Estado não nos enxerga, não percebe e não nos dá voz e vez”
A pandemia tirou as pessoas com deficiência da escola, do trabalho e de outros lugares. Muitos casos de violência não foram identificados por professores, psicólogos, colegas ou outros grupos. Em muitos casos, as denúncias surgem após observação de pessoas com as quais as vítimas convivem fora de casa. Sem essa convivência durante a pandemia, a violência continua acontecendo, mas não é notada, nem mesmo por órgãos públicos.
Em me questiono: por que os altos índices de violência contra as pessoas com deficiências não aparecem em registros oficiais? Simplesmente porque desde a década de 1980, o sistema DataSUS não identifica a pessoa com deficiência em seu formulário de registro das ocorrências! E como esse sistema é a base para Fórum Brasileiro de Segurança Pública, elaborado pelo Atlas da Violência 2020, não existe nenhuma informação em relação às pessoas com deficiência. Eu me questiono: como pode um público que vive a vulnerabilidade da vulnerabilidade não fazer parte de um mapa que mapeia a violência?
Em reportagem do Blog Vencer Limites, o advogado e paratleta Emerson Damasceno, membro da Comissão Nacional de Defesa da Pessoa com Deficiência do Conselho Federal da OAB, afirmou que a falta de dados sobre a violência contra pessoas com deficiência somente ressalta a não priorização de políticas públicas para pessoas com deficiência por parte do governo federal.
“O instrumento é imprescindível a fim de que as políticas sejam melhor otimizadas, mas a invisibilidade da pessoa com deficiência atinge até a coleta e divulgação dos dados. Somos 1/4 da população brasileira, mas não somos para nosso protagonismo ou enquanto beneficiários de direitos, o Estado não nos enxerga, não percebe e não nos dá voz e vez, omitindo direitos básicos. Embora tenha ferramentas para isso, o governo federal se omite, deixando claro que as políticas públicas não são inclusivas, mas sim excludentes”.
Saiba mais sobre:
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- Senadora Mara Gabrilli pede atenção do governo a pessoas com deficiência na pandemia;
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