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Agnes Arruda
18 de julho de 2022

Carta para o meu corpo

Não estou aqui para pedir desculpas, mas gostaria que fizéssemos as pazes

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carta ao meu corpo

QUERIDA corpa gorda, como vai você?

Primeiro, preciso dizer: vou te chamar assim, tá? De corpa. Somos mulheres e sabemos muito bem que a banda toca diferente por aqui justamente por causa disso; daí que é importante determinar esse espaço. Pode soar estranho no começo, eu sei, mas também sei que você vai se acostumar. 

Além de “corpa”, também demorei para te chamar de “querida”, né? Quase 30 anos!

Mas por favor, não me leve a mal. É que ao longo de todo esse tempo, só o que me ensinaram foi que você era feia, que era errado viver em você. Que tinham nojo de como você parecia, que viveríamos uma vida doente juntas, fadada ao fracasso. E olha, não foi pouco, não.

Ouvi isso em casa, na rua, na escola, no trabalho… E fizeram questão de demonstrar o horror que era viver em você, das maneiras mais racionais e objetivas, com balanças, tabelas e notícias de jornais parecem ser, das mais subjetivas e nem por isso menos assustadoras, em programas de televisão, com histórias tristes e alarmantes sobre o futuro que eu teria caso continuasse com você.

E daí que ficou fácil te odiar. E, nossa, eu te odiei, viu? Odiei bastante, odiei tanto, a ponto de querer que você não existisse… Vou te falar que, algumas vezes, quase consegui que isso acontecesse. 

Eu machuquei você, por dentro e por fora, tentando fazer você caber em lugares que não te queriam… Mas não porque você era tudo de ruim que diziam ser; não te queriam por puro ódio a você mesmo. Que sensação horrível de se ter.

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Esse sentimento, que eu tive desde sempre, mas não conseguia expressar em palavras, descobri anos depois que tinha um nome: gordofobia. Só que, mesmo assim, depois de saber do que se tratava, ainda tentei negar a sua existência. Não deu.

As coisas estão menos difíceis agora, é fato. Já entendi bastante da nossa relação e sei que a verdade sobre você só eu posso dizer qual é, mais ninguém. Confesso que nem sempre é fácil ter que gostar de você todo dia. Porque por mais que eu saiba da existência do preconceito, ele não deixa de existir, e tenho que enfrentá-lo cotidianamente.

Além do quê dá um trabalhão ter que te defender, viu, corpa gorda? E não vou negar que às vezes é mais fácil desejar que você não exista. Apesar disso tudo, e da demora, não estou aqui para pedir desculpas. Parece rude, eu sei, mas gostaria que entendesse. 

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Depois de tanto tempo me sentindo culpada – pelas coisas mais absurdas que me fizeram pensar sobre você -, acabou que me dei conta de que a culpa por não te querer bem, por tanto tempo, eu não posso carregar. Até porque eu nem sabia que era uma possibilidade essa nossa relação pacífica. 

Mesmo com as incoerências de hoje, aprendi também que dizer tudo que estou escrevendo aqui publicamente não me faz menos ativista, nem menos gorda. Veja só! Colocar esses sentimentos em palavras, corpa, apenas reforça o quão profundo é o machucado que a gordofobia deixou em você. 

A boa notícia? Estamos, juntas, sarando essa ferida. Vamos ser amigas?

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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