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Rainhas de bateria: você conhece a história delas?

Papel que nasceu com mulheres negras da comunidade virou lugar disputado por famosas e celebridades

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Como o próprio nome diz, rainhas de bateria são mulheres que desfilam na frente do que é considerado o coração da escola de samba. O lugar onde músicos tocam vários instrumentos e dão ritmo para o samba-enredo que vai ser cantado por toda a avenida. Diferente da maior parte dos foliões, que desfilam dentro das alas, as rainhas são conhecidas pelo nome e pelo rosto. O que faz com que esse lugar seja soberano em termos de visibilidade e curiosidade do público. Mas nem sempre foi assim. 

As escolas de samba nasceram oficialmente em 1932, junto com o primeiro desfile de carnaval, na praça Onze, no Rio de Janeiro. Nessa época não existia o posto de rainha de bateria. O que tinha eram várias mulheres, das comunidades locais, que dançavam juntas enquanto o samba rolava. Não muito diferente do que já acontecia em outras expressões culturais negras. “A capoeira é coletiva, o candomblé é coletivo, o samba é coletivo, o carnaval é coletivo. Então eles se sentavam ali e comungavam”, explica Lyllian Bragança, sambista, pesquisadora e jornalista falando da Escola de Samba Vai-Vai (SP). 

Essas mulheres que dançavam, primeiro foram chamadas de  “rumbeiras”, mais tarde elas ficaram conhecidas como “cabrochas”. Um tempo mais adiante foram chamadas de “mulatas” e a partir dos anos 60 passaram a receber o nome de passistas, termo que se usa até hoje. A ala de passistas virou, por tradição, o lugar em que as mulheres de cada comunidade aprendem a história da sua escola e, principalmente, o samba no pé. 

Mudança na avenida 

Dentro dessa ala surgiram os primeiros concursos para eleger a rainha de bateria. Quem recebia o título, era a melhor passista. A segunda e terceira ficavam com o papel de princesas. Foi assim com Nãnãna da Mangueira, que desfilou em 1972, sambando e cantando como rainha na frente da bateria. E também foi o que aconteceu com Lyllian Bragança. “Chego no carnaval com 17 anos. E aí eu me apaixono, começo a dançar e muito imediato já vou para frente de bateria no ano seguinte. É o que eu chamo de rito de passagem”, conta. 

A rainha, então, era da comunidade. Só que aos poucos começa acontecer uma mudança nesse papel. Mulheres de fora das escolas passam a ser convidadas para desfilar como rainhas. Foi assim com a dançarina Eloína dos Leopardos, que estreou na Beija Flor em 1976, convidada por Joãozinho Trinta. E também com a atriz Adele Fátima, que em 81 se tornou rainha na Mocidade Independente de Padre Miguel.

Na década de 80, celebridades como Monique Evans e Luma de Oliveira também fizeram seus primeiros desfiles. É quando começa a se popularizar a imagem de uma rainha de bateria branca, famosa e midiática. Movimento que se multiplica e se espalha por outras escolas nas décadas seguintes. Esse papel também abre espaço para musas do carnaval, que também são, na maioria dos casos, mulheres famosas. A diferença, na prática, é que elas desfilam entre as alas, não na frente da bateria. Uma transformação que não ficou apenas na avenida. 

Lyllian Bragança explica que ao contrário do que vivenciou no começo de sua trajetória com o carnaval, algumas escolas hoje já não têm mais alas de passistas. “Isso retira alguns símbolos e significados do que é a nossa cultura, mas é um projeto de poder, porque retira as pessoas [pretas] desses lugares”. Ela reforça que de tempos em tempos é necessário resgatar e discutir a importância dessas mulheres nas escolas de samba.

Não é incomum que celebridades sejam criticadas por não saberem cantar o hino ou dançar. Lyllian reforça que não é contra famosas desfilarem. “Não tô falando que mulher branca não pode estar, mas vai aprender? Vai respeitar, sobretudo, quem veio antes?”, desabafa. E ressalta o papel da Mangueira e da Vai-Vai, escolas que ainda mantêm suas tradições. “Ouso dizer que só as maiores entendem o que é comunidade”. 

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Um espelho da comunidade 

Quando começou a pesquisar a trajetória de mulheres passistas, a jornalista Bárbara Pereira notou que as escolas de samba tinham uma dinâmica muito similar a um quilombo. Um lugar em que a cultura, a estética e o saber negro são celebrados,  ensinados e valorizados.  “Até pouco tempo, a grande maioria das passistas eram de espaços e corpos não valorizados socialmente – e ali é um lugar de beleza”.  Uma espécie de espelho para a comunidade, que inspira várias gerações. “Tudo o que elas [passistas] criam –  seja pro cabelo, pra unha  – vira moda no território. As meninas querem ser a Evelyn Bastos [rainha de bateria da Mangueira]”.

Para além da revolução na imagem, passistas negras também já inspiravam discussões sobre se apoderar do próprio corpo, do próprio desejo e do próprio discurso na sociedade. Dentro e fora das escolas de samba. “Eu acho a Nãnãna da Mangueira uma figura extremamente importante para o feminismo do carnaval, porque nos anos 50 ela mesmo falou: ‘eu já botava biquíni, era eu que costurava’”, diz Bárbara Pereira, autora do livro “Pé, cadeira e cadência: trajetórias e memórias de passistas do carnaval carioca”. 

Para ela, essas mulheres foram as primeiras a questionar a culpa que recai sobre os corpos femininos que desfilam na avenida. “A culpa é de quem tá por trás da câmera – geralmente um homem – enquadrando aquela parte do corpo dela”, finaliza. 

Pontuações e regras 

As escolas de samba de São Paulo e Rio de Janeiro não são obrigadas a ter rainhas de bateria. “A presença se dá, sobretudo, pelo seu caráter simbólico e representativo”, explica Leandro Santana, historiador da arte e pesquisador do carnaval paulistano. A regra pode mudar a cada município, já que cada grupo de avaliação possui sua própria especificidade. 

Nesses dois estados também não é obrigatório o papel de musa. E nenhuma delas é avaliada individualmente. “A diferença[entre elas], ao meu ver, se dá sobretudo por questões de status e visibilidade. Há uma certa hierarquia entre os postos que compõem a corte de bateria e, nesse sentido, a Rainha de Bateria é a que possui maior destaque midiático”, avalia Leandro Santana. Dentro do universo das escolas de samba, cada agremiação possui sua própria dinâmica para escolher os integrantes dessa ala.

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