Jéssica Garzón é uma das psicólogas da fundação Oriéntame – centro de saúde sexual e reprodutiva na Colômbia -e se reconhece como feminista desde muito jovem. “Eu trabalho com uma perspectiva feminista, é algo que me acompanhou a vida inteira”, diz ela, hoje, aos 30 anos. O ativismo começou a devolver a profissionais como Jéssica a dignidade de seu trabalho, dando visibilidade. “Esses grupos transformaram nossa equipe de saúde em heroínas que salvam vidas”, complementa Luisa Fernanda, Álvarez, que foi coordenadora operacional da Oriéntame por quase três décadas.
Em outubro de 2019, Jéssica começou a trabalhar na Oriéntame e também sentiu a hostilidade dos grupos antiaborto. Sua primeira semana foi durante a vigília dos 40 Dias pela Vida. Ela lembra que, na entrada da clínica, uma voluntária da campanha a abordou e colou um pedaço de papel em seu peito escrito: “Se você está grávida, não está mais sozinha“. “Foi uma situação desconfortável e dolorosa para mim, pois se apela para ideias de culpa e dicotomias entre o bem e o mal”, reflete Jéssica.
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Dentro da clínica, Jéssica usa uma camiseta com os dizeres: “Você decide, eu te acompanho“. O primeiro passo no processo de consulta com as pacientes é o diálogo e a busca pela desconstrução de ideias de culpa e medo. “A religião tem um papel fundamental nas cosmovisões que as mulheres trazem consigo sobre a decisão de interromper uma gravidez”, explica.
Na Colômbia, assim como em outros países majoritariamente religiosos, são perpetuados estigmas sobre as mulheres, seus corpos e o destino de serem mães, mas há outras leituras. “Os textos da Igreja Católica estão abertos ao diálogo; não há uma visão única e fechada sobre a questão do aborto. A condenação das mulheres que fazem aborto tem a ver com crenças culturais, família, escola e moral ambígua”, analisa Sandra Mazo, ativista católica, feminista e diretora da organização Católicas por el Derecho a Decidir – Colombia (Católicas pelo Direito de Decidir – Colômbia).
Jéssica Garzón abre um folder e outros documentos que compartilha com as pacientes. Há informações, frases de orientação, explicações e reflexões sobre o Direito Canônico, o significado do amor de Deus e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. As mensagens dizem: “Você é livre para tomar suas decisões / Deus te ama / Não pergunte fora, pergunte a si mesma, com consciência e não por medo ou culpa“.
O Código de Direito Canônico, que regula as normas jurídicas da Igreja Católica e as obrigações de seus fiéis, também é utilizado como material durante as consultas na Oriéntame. “Nos cânones 1.323 e 1.324 há uma circunstância atenuante para o aborto que reduz a pena de excomunhão”, comenta Jéssica. Ela lê em voz alta: “Qualquer mulher que opte por não se tornar mãe por medo de uma vida incerta, por necessidade ou para evitar graves prejuízos, está excluída da excomunhão“.
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Jéssica e suas colegas da área de psicologia da clínica trabalham com a Bíblia e textos religiosos de forma interpretativa, em uma linguagem metafórica que abre o olhar para uma revisão de passagens adaptadas ao contexto e às realidades das mulheres latino-americanas de hoje. No entanto, os desafios culturais permanecem latentes. “Falamos de medo e culpa que vêm de visões de poderes patriarcais. Hoje, um padre dificilmente diria a seus fiéis que a Igreja perdoa as mulheres que abortam. Isso seria muito forte”, conclui Sandra Mazo, das Católicas por el Derecho a Decidir.
O ecossistema pró-vida
A Red Provida (Rede Pró-Vida) é uma iniciativa sem fins lucrativos que atua como guarda-chuva para organizações que compartilham o objetivo de “defender a vida” e “evitar o aborto“. Cada uma delas realiza atividades em diferentes áreas. Enquanto a 40 Días por la Vida organiza campanhas em frente a clínicas que oferecem aborto, a Coalición por la Vida – Mamás 40 (Coalizão Pela Vida – Mães 40) recebe mulheres grávidas em seus lares durante a gravidez e as acompanha até depois do nascimento. Essa última iniciativa funciona em uma casa em Teusaquillo, no mesmo bairro da Oriéntame.
As gestantes que vêm ou que recebem informações ao serem abordadas nas vigílias têm acesso a um exame de ultrassom. Elas também recebem explicações sobre a evolução da gravidez em simulações com bonecas em miniatura que os conselheiros do grupo utilizam para supostamente mostrar “como está o bebê”.
“Nossa missão é transformar a maternidade que está em crise em uma maternidade calma e feliz”, afirma Mary Carmen, integrante do Mamás 40 (Mães 40). Nesse local, também há entrega de doações e oficinas sobre desenvolvimento integral e maternidade, costura e fabricação de chocolate. Parte-se da ideia de que as mulheres grávidas podem se virar por si mesmas. “Nós lhes damos a vara de pescar e não o peixe”, diz Ivone del Pilar Laborde, uma das responsáveis da Coalición por la Vida.
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No campo da defesa política, as organizações “pró-vida” na Colômbia estão agrupadas na Unidos por la Vida (Unidos pela Vida), que trabalha com propostas que precisam de articulação, e também com questões de aspecto jurídicos.
Esses grupos têm se organizado e crescido em torno da rejeição ao aborto e da defesa da família tradicional. Sandra Mazo, das Católicas por el Derecho a Decidir, analisa: “Existe a bancada religiosa no Congresso que, embora não seja majoritária, está se fortalecendo. As ações da Unidos por la Vida vêm se transformando e se posicionando publicamente alinhadas com partidos políticos e com a direita colombiana”. A organização está promovendo um projeto de lei para criar uma bancada “pró-vida”, alerta Sandra. “Cerca de 58 membros do Congresso estão a favor dessa iniciativa.”
A Unidos por la Vida nasceu em 2006 como resultado da primeira decisão sobre as três razões legais para se recorrer ao aborto. Em 2022, ela ganhou força novamente com a descriminalização até 24 semanas de gestação. Esses grupos consideram que a Corte Constitucional extrapolou sua autoridade. “A legalização exige que a decisão passe pelo Congresso e, na Colômbia, ela não passou”, argumenta Andrea Garzón, uma das líderes da Unidos Por la Vida.
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Houve até a promoção de duas iniciativas – lideradas por congressistas e ex-congressistas “pró-vida” e apoiadas por grupos religiosos e antiaborto – para recolher assinaturas visando convocar um referendo para revogar a norma aprovada, mas nenhuma das duas alcançou a quantidade mínima necessária e a questão foi arquivada. O objetivo era a proteção constitucional para todas as pessoas não nascidas (desde a fecundação); o direito à vida como um direito inviolável, que o ser humano fosse considerado como tal desde a concepção – propostas que se assemelha ao projeto do Estatuto do Nascituro no Brasil. E, por fim, pediam a ratificação do direito à objeção de consciência (recusa de atendimento por motivos religiosos ou crenças pessoais) para todos os colombianos.
Para Sandra Mazo, os riscos de retrocesso nos direitos sexuais e reprodutivos permanecem. “A pauta desses direitos está sempre em perigo. Essa cruzada contra o aborto traz a questão para a discussão pública por meio da manipulação da mídia, gerando instabilidade e confusão”, avalia ela, que acredita que os movimentos que defendem os direitos sexuais e reprodutivos devem focar em fornecer mais informações sobre a decisão e trabalhar para sua implementação efetiva.
Narrativas e disputas
No bairro de Teusaquillo, em frente à clínica Oriéntame, algumas mulheres que defendem a autonomia para decidir sobre o aborto marcham ao som de tambores e pandeiros. Há um clima festivo, com trajes artísticos e cores verdes, e a intenção de cercarem a clínica em um gesto de abraço simbólico. Na frente delas, grupos antiaborto seguram faixas, imagens de fetos em formação, rosários escorregando pelas mãos. A batalha continua.
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*Esta história foi produzida pela jornalista Soledad Dominguez com o apoio da International Women’s Media Foundation (IWMF) como parte de sua iniciativa de Saúde Reprodutiva, Direitos Reprodutivos e Justiça nas Américas, e publicada em espanhol e português, no Brasil por AzMina.