“Saúde sexual” não pode. “Direitos reprodutivos” nem pensar. Por que “gênero” se podemos usar “sexo”? Há mais de um ano, AzMina vem monitorando os direitos das mulheres no Congresso Nacional e algo tem chamado atenção: alguns parlamentares têm realizado uma verdadeira cruzada contra certas palavras e expressões ligadas aos direitos das mulheres. Termos como os citados – e diversos outros – vêm sendo sistematicamente retirados de projetos de lei e proposições parlamentares, em um ataque silencioso aos temas ligados à identidade gênero e direito de escolha da mulher.
No início de 2020, por exemplo, uma proposta na Câmara dos Deputados que garantia os serviços de “saúde sexual” e “saúde reprodutiva” como essenciais durante a pandemia para a proteção de mulheres vítimas de violência foi acusada de ser “abortista”. Para alguns parlamentares da base do governo, isso poderia significar garantir também acesso a serviços de aborto – que é um direito previsto na legislação brasileira em casos de estupro, risco à vida da mulher ou anencefalia do feto. Parece óbvio, portanto, que durante a pandemia esse direito continue valendo. Mas para os parlamentares que são contra o direito de escolha, qualquer termo que possa fazer alusão ao aborto como direito é essencialmente perigoso – ainda que o projeto de lei não falasse diretamente nada sobre isso. Então para que o projeto fosse aprovado, essas palavras foram retiradas do texto.
É uma forma de ação conservadora mais discreta, que não atrai muita atenção, nem causa grande mobilização pública, mas pode ter efeito. “Essa é uma forma de desconhecer, anular, tirar da linguagem o que construímos em direitos das mulheres na última década. Como se tudo isso pudesse ser apagado da matéria do arcabouço jurídico de políticas públicas do país”, explica Masra Abreu, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea).
Esse ataque a termos que dizem respeito aos direitos reprodutivos encontra respaldo e até mesmo inspiração no governo federal. No ano passado, questionado pelo deputado Alexandre Padilha (PT-SP) sobre como os temas dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher são tratados pelo Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty respondeu que defende internacionalmente o direito à vida desde a concepção. A pasta ainda afirmou que está atenta ao “uso indevido” de termos que não teriam definição clara, como “serviços de atenção à saúde sexual e reprodutiva”. No entanto, esta expressão tem definição clara, trata dos serviços que lidam com contracepção, atendimento ginecológico e, em alguns hospitais, aborto para os casos permitidos pela lei brasileira.
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“O ativismo político contra o aborto não é um movimento estritamente nacional, mas que tem sido tecido em redes internacionais e tem sido incentivado com recursos financeiros, como a promoção de eventos internacionais”, conta a cientista política Flávia Birolli. Ela lembra que Angela Gandra, secretária da Família do Ministério dos Direitos Humanos, teve uma viagem à Polônia totalmente paga pela entidade antiaborto Ordo Iuris, para falar em um evento contra o aborto.
Uma das estratégias também tem sido incluir em projetos que falam sobre saúde infantil, direitos das crianças, gestação e temas correlatos, o termo “nascituro”, nomenclatura dada a aquele que irá nascer, que foi gerado e não nasceu ainda. É a antiga e recorrente tentativa de definir que a vida humana começa já na concepção e que, portanto, o nascituro teria direitos civis, o que eliminaria a hipótese de aborto em qualquer caso.
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O fantasma da “ideologia de gênero”
Apesar do repúdio a várias expressões, talvez nenhum termo assombre tanto parlamentares conservadores quanto a palavra “gênero”. Em casas legislativas de todo o país há casos de deputados e vereadores que tentam retirá-los de projetos de lei. É que para eles existe uma tentativa de implantar o que chamam de “ideologia de gênero” – algo que sequer existe.
Como já contamos na AzMina, o termo se refere a um grande número de coisas, mas principalmente ao que se chama de “estudos de gênero”, teorias que tentam analisar, entre outras coisas, de onde vêm as ideias de masculino e feminino que dão base à nossa sociedade e questionam os papéis que são automaticamente atribuídos a homens e mulheres. Para parlamentares conservadores, no entanto, qualquer ideia que fuja de “rosa para meninas e azul para meninos” é uma tentativa de impor às crianças a “ideologia” de que elas podem escolher se querem ser meninas ou meninos.
“Há um esforço para deslegitimar a agenda de igualdade de gênero que tem um descolamento da visão tradicional de que existe uma natureza dos sexos que determina papéis de homens e mulheres. É um esforço de renaturalização dos papéis, algo que vem desde os anos 1990 mas que ganha mais força política com a ascensão do conservadorismo sobretudo religioso na política institucional”, afirma Birolli.
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A retirada do termo “gênero” das proposições esconde também a frequente tentativa de continuar a deixar à margem homens e mulheres transgêneros. Na maioria das vezes, a sugestão é a troca pelo termo “sexo”. Um exemplo: foi aprovado no Senado e seguiu para sanção presidencial o projeto de lei que fala sobre violência política contra mulher. Dentre várias coisas, o PL afirma que serão garantidos os direitos de participação política da mulher, vedadas a discriminação e a desigualdade de tratamento em virtude de sexo ou de raça. Veja bem: “sexo” e não “gênero”. Esse tipo de redação define e protege as pessoas em razão de seu sexo biológico e não pelo gênero com a qual se identificam. As mulheres trans, portanto, ficam desprotegidas. O senador Fabiano Contarato (REDE-ES) chegou a apresentar uma emenda para corrigir o problema, mas ela foi rejeitada.
“Isso limita as políticas públicas para as pessoas transgêneros, não-binárias, intersexo. Só é reconhecido nesses projetos mulheres que têm vaginas e se reconhecem como mulher. Limita muito a possibilidade até onde esses projetos podem chegar. Para quem é feita essa política?”, conta Abreu.
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Família em tudo
Além de palavras como “sexo” ou expressões como “sexo biológico”, há outro termo que vem sendo cada vez mais usado e enfatizado em projetos de lei de parlamentares conservadores: “família”. Em propostas que falam sobre gestação e até sobre violência doméstica, deputados e senadores vêm tentando “fortalecer o papel da entidade familiar que é célula-mater da sociedade”.
Essa é outra ideia difundida também pelo governo federal. Em julho, o presidente Jair Bolsonaro assinou um projeto de lei que cria o Dia Nacional de Conscientização sobre a Paternidade Responsável – junto a outra proposta que cria o Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do Aborto. A ideia é conscientizar a sociedade a respeito dos “direitos, deveres e obrigações de ordem material, social, moral e afetiva decorrentes dos vínculos paterno-filiais e materno-filiais, gerando famílias com vínculos familiares mais fortes”. Existe a ideia de que uma maior presença dos pais na gestação da mulher possa inibir a prática do aborto.
Esse “conceito” também apareceu no documento “Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil”, publicado em decreto pelo governo em outubro do ano passado. O texto traz, em seu “eixo social”, a afirmação de que o governo deve “promover o direito à vida, desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro, por meio de políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e atenção às gestantes”.
“Essa articulação semântica é um ataque político-ideológico contra os avanços conquistados na última década e é uma estratégia poderosa. É uma disputa como a que foi feita por nós com termos como “feminismo”, que antes era esculachado socialmente”, conta Abreu. “É preciso ficar atenta porque, com a queda do Trump e o arrefecimento das coisas nos Estados Unidos, o Brasil está em foco como a grande voz na luta contra o direito das mulheres, como se esses parlamentares fossem os ‘bastiões’ da família.”
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Dicionário do conservadorismo no Congresso
Não pode: “saúde sexual”, “direitos sexuais”, “direitos reprodutivos”
O que realmente quer dizer: direitos sexuais estão relacionados ao direito da mulher poder tomar decisões conscientes, informadas e com liberdade sobre sua própria sexualidade. Já os direitos reprodutivos asseguram a livre tomada de decisão sobre a própria fecundidade, gravidez, educação dos filhos e saúde reprodutiva. Isso quer dizer ter acesso a informação sobre contracepção e planejamento familiar para poder tomar decisões, a atendimento especializado e recursos, como pílula ou DIU, médicos e atendimento para parto, para colocar em prática essas decisões. A saúde sexual está ligada a esses direitos e trata do atendimento em saúde para as questões sexuais e reprodutivas da mulher, como ginecologia, obstetrícia, acesso a contracepção, etc.
O que dizem que é: Há parlamentares que garantem que eles são “eufemismos” para aborto.
Pode: “nascituro”, “criança por nascer”
O que realmente quer dizer: É um termo jurídico utilizado para designar o ente gerado ou concebido, de existência no ventre materno, mas que ainda não nasceu. Traduzindo: o feto ou o embrião. E que, por não ter nascido, não tem direitos civis ou políticos.
Por que usam esse termo? Parlamentares contra o direito de escolha tentam incluir o “nascituro” como um sujeito de direito. Isso porque se o embrião recém-concebido for legalmente visto como um cidadão, o aborto passaria a ser crime em todos os casos – inclusive os que hoje são legalizados.
Não pode: “planejamento reprodutivo”, “profilaxia da gravidez”
O que realmente quer dizer: São termos que falam sobre políticas públicas de educação, orientação profissional e fornecimento de métodos contraceptivos ou da chamada “pílula do dia seguinte” – que apenas evita a fecundação e não pode interromper uma gestação, para que mulheres possam decidir quando querem ser mães.
O que dizem que é: Recentemente, no parecer a um projeto que tratava da Semana Nacional de Conscientização sobre os Direitos das Gestantes, a deputada Chris Tonietto (PSL-RJ) foi contra o uso da expressão “planejamento reprodutivo” afirmando que ela estaria sendo utilizada inclusive pela ONU para fomento e viabilização do aborto.
Em outro projeto, de autoria do Poder Executivo, à época do governo de Dilma Rousseff, há a proposta de substituir o termo “profilaxia da gravidez” por “medicação com eficiência precoce para prevenir gravidez resultante de estupro”. A pílula do dia seguinte, como sabemos, não pode interromper uma gravidez, mas parlamentares temem que “profilaxia da gravidez” possa incluir procedimentos como o aborto ou medicamentos que induzem o abortamento.
Pode: “planejamento familiar” e “paternidade responsável”
O que realmente quer dizer: Planejamento familiar trata de recursos de saúde e educação para o planejamento conjunto do momento de ter filhos. Já paternidade responsável fala sobre a participação ativa do homem na criação dos filhos.
Por que usam esses termos? Servem para o fortalecimento do ideal de família heteronormativa, formada por homem e mulher, como responsáveis pelas decisões reprodutivas. Além de reforçar os direitos e obrigações decorrentes dos vínculos paterno-filiais e materno-filiais. Em tramitação no Congresso, o Estatuto da Gestante, por exemplo, prevê a corresponsabilidade do homem na gravidez. O senador Eduardo Girão (PODEMOS-CE), autor da proposta, justifica que ao fugir de suas responsabilidades e abandonar as gestantes, esses pais muitas vezes levam à prática do aborto ou ao abandono das crianças.
Não pode: “gênero”, “igualdade de gênero”
O que realmente quer dizer? Uma construção social sobre o que significa ser mulher ou homem, com papéis e expectativas que a sociedade tem sobre comportamentos que acompanham (ou não) o sexo atribuído a uma pessoa.
O que dizem que é: Uma suposta ideologia que estaria sendo imposta às crianças, estimulando que se tornassem trans, gays ou lésbicas.
Pode: “sexo”, “paridade entre homens e mulheres”
O que realmente quer dizer: Sexo é o rótulo dado a alguém de acordo com uma série de fatores fisiológicos, como a genitália, os hormônios e os cromossomos. Já a paridade entre homens e mulheres trata da igualdade entre os gêneros masculino e feminino.
Por que usam esses termos? Sexo é usado no lugar de “gênero”, como tentativa de restringir os direitos de pessoas trans. Da mesma forma, troca-se paridade ou igualdade entre gênero, por “paridade entre homens e mulheres”. Na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher um projeto de lei que assegura a igualdade de gênero na composição dos cargos diretivos e dos Conselhos no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) recebeu uma emenda, que foi acatada parcialmente, para substitui o termo “igualdade de gênero” por “paridade entre homens e mulheres”.