A economista Emília Marinho pediu um presente diferente para os seus amigos no seu aniversário de 28 anos. “Quero a sua ajuda para formar um fundo e fazer ações florescerem aqui”, dizia a sua mensagem com pedido de doação para o financiamento do Goianas nas Urnas, escola de formação política para mulheres.
Desde 2018, quando Emília fez esse pedido, se proliferaram escolas de formação política focadas em mulheres pelo Brasil afora. São cursos e iniciativas de diversos formatos, que ensinam de estratégias de campanha até legislação eleitoral e prestação de contas, passando por captação de recursos. O objetivo é aumentar o número de mulheres na política e reduzir a desigualdade de representatividade em espaços de poder.
Apesar das discussões sobre a mudança do calendário eleitoral por causa da pandemia do novo coronavírus, 2020 ainda é ano de eleições – por ora, a disputa está mantida para outubro deste ano – e o principal alvo dos movimentos é conquistar mais cadeiras no legislativo.
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“Os partidos são focados em grandes nomes, que ainda hoje são de homens brancos, proprietários, heterossexuais, cisgêneros, de classe média e alta. Falta formação para as mulheres porque os partidos investem muito mais dinheiro, recursos e tempo na formação de homens e a gente quer furar essa bolha, quer adentrar nesse espaço”, diz Letícia Kreuz, presidenta do Instituto Política Por.de.para Mulheres, que promove cursos de formação política no Paraná.
O tamanho da desigualdade
Nas últimas eleições municipais, em 2016, 25% dos municípios brasileiros não elegeram sequer uma mulher para vereadora. Menos de 14% dos vereadores eleitos naquele ano eram mulheres, segundo o estudo Perfil das Prefeitas no Brasil (2017-2020), do Instituto Alziras com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O que mostra o tamanho do problema de representatividade, já que as mulheres são 52% do eleitorado no Brasil.
Em Goiânia, por exemplo, dos 35 eleitos na Câmara Municipal em 2016, apenas cinco são mulheres. O Goianas nas Urnas quer dobrar esse número nas eleições deste ano. Para isso, selecionou 19 mulheres que serão candidatas ao legislativo da cidade este ano. Como a demanda se mostrou grande, está finalizando uma nova seleção de mulheres de outras cidades do estado.
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“Temos a preocupação de mostrar que elas não estão sozinhas, que não se faz política sozinha. Queremos mostrar pelo exemplo, pela formação e pela imersão e construção conjunta que elas são capazes e podem ser eleitas”, diz Juliana Leal, uma das coordenadoras do Goianas nas Urnas.
É nos municípios que são feitas as políticas públicas que impactam de forma concreta a vida cotidiana das pessoas e da qual muitas mulheres querem se envolver, diz Letícia. “Por isso é necessário fazer formação. Não porque falte alguma habilidade para elas serem representantes políticas, mas sim porque nos falta o encorajamento e o apoio dos partidos e de outros grupos políticos”, afirma.
Grana para a campanha
Desde 2009, a lei eleitoral brasileira exige que pelo menos 30% das candidaturas dos partidos sejam de mulheres. Mas essa regra só passou a ser levada a sério mesmo quando bateu no bolso dos partidos: em 2018, a regra passou a valer também para a divisão do dinheiro do fundo partidário, que financia as campanhas. Isso aliado ao crescente debate sobre a falta de representatividade das mulheres na política criou o cenário ideal para os programas de formação política.
Pré-candidata a vereadora por São Paulo, Keit Lima passou por oito programas de formação política. “Eu decidi fazer porque como mulher preta e pobre, eu não vou ter grana de partido”, conta Keit, 29 anos, formada em administração de empresas e graduanda em direito, moradora da Brasilândia, periferia de São Paulo. Ela destaca que o histórico dos partidos mostra que os negros recebem menos verba partidária.
Entre fundo partidário e doações de pessoa física que a legislação eleitoral permite, candidatos homens brancos recebem três vezes mais recursos que mulheres negras. Segundo a pesquisa “Democracia e representação nas eleições de 2018”, os homens brancos que se candidataram ao cargo de deputado federal na eleição de 2018 receberam, em média, 307 mil reais, seguidos das mulheres brancas (192 mil reais), dos homens negros (138 mil reais) e das mulheres negras (95 mil reais).
Melhorar a capacidade competitiva das mulheres nas campanhas eleitorais foi o que motivou as consultoras de campanha Karin Vervuurt e Letícia Medeiros a criar o Elas no Poder em 2018. A organização sem fins lucrativos tem como objetivo levar serviços estratégicos para as campanhas de candidatas.
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“Só homens estão tendo acesso a serviços de inteligência nas campanhas, a maioria das mulheres não tem dinheiro pra bancar esse tipo de estratégia de pesquisa de dados”, diz Karin. O Elas no Poder, em parceria com o Instituto Update, lançou este ano um financiamento coletivo que atingiu a sua meta para criar uma plataforma digital de formação para candidatas.
Keit avalia que esses movimentos são uma alternativa para superar as dificuldades que ela pode ter durante a campanha e até dentro do seu partido (ela é filiada ao PSOL) com uma candidatura independente. “Participar desses movimentos me traz formação, visibilidade e estratégias de comunicação”, conta.
Nos últimos dois anos, ela fez parte tanto de programas focados em mulheres (Elas no Poder, Iniciativa Brasilianas, Vai ter Mulher Sim e Mulheres Negras Decidem) quanto de grupos de renovação política (Bancada Preta, Movimento Comuns, RenovaBR e Rede de Ação Política pela Sustentabilidade- Raps).
Lugar de mulher
“Uma mulher na política não é esperado, pois não fomos criadas para estar na política. É uma quebra de expectativa mesmo, é a construção de um imaginário que não existe”, conta Maisa Diniz, uma das fundadoras do coletivo Vote Nelas, iniciativa suprapartidária que prepara mulheres para o legislativo.
A consultora de planejamento estratégico Hanna Pereira viveu isso na pele quando coordenou uma campanha política nas eleições de 2016. “Me falavam: ‘nossa, eu gostaria que você coordenasse a minha campanha’. Em nenhum momento eu ouvi de homens que eu poderia ser a candidata, mas eu ouvi de mulheres”, conta. Em 2018, ela fundou o Elas na Política, um projeto de formação para mulheres candidatas da Baixada Santista, no litoral de São Paulo.
Quando nasceu, em 2018, a ideia do Vote Nelas era qualificar o debate sobre a presença de mulheres na política, com dados e pesquisas, para diminuir machismo neste espaço. Mas no decorrer do trabalho ficou claro que precisariam ir além. “Ao longo do processo percebemos o quanto as candidaturas femininas precisavam de apoio”, diz Maísa.
Nas eleições de 2018, o coletivo trabalhou na divulgação de 35 candidaturas de mulheres para o legislativo, apresentando as candidatas de acordo com os seus assuntos de interesse. Para a eleição deste ano, está construindo uma rede nacional de embaixadoras, que terá como missão divulgar as candidaturas locais.
A cientista política Teresa Sacchet, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), observa que os movimentos de mulheres, que antes eram mais focadas em questões da sociedade civil, passaram a trabalhar para ocupar também a política institucional. “Além de mudanças culturais, trabalhar a questão partidária, das estruturas, é fundamental para promover mudanças na sociedade. As duas coisas têm que caminhar juntas”, diz.
Diversidade de gênero e raça
A demanda por maior representatividade, tanto de gênero quanto de raça, também chegou às escolas e movimento de renovação política, como Acredito, RenovaBR e Raps. A pré-candidata Keit Lima, que participou de alguns deles, observa que esses espaços ainda são dominados por pessoas brancas e de classe média. “Eu gosto de estar lá para cobrar os que falam de renovação. Que tipo de renovação nós estamos falando?”, questiona.
O programa Raps incluiu mecanismos de equidade em seu processo de seleção. Na primeira fase, por exemplo, os candidatos que atingiram uma nota mínima na prova são separados em grupos (mulheres negras, mulheres brancas, indígenas, pessoas trans, homens negros, homens brancos) para garantir que os melhores candidatos de cada grupo avancem para a próxima fase.
Nos processos seletivos de 2019 e 2020, a Raps teve 52% de mulheres ingressantes. “A medida que a rede foi crescendo, houve uma provocação crescente das mulheres por maior participação”, conta Cássia Marques da Costa, coordenadora de apoio à ação política da Raps. A rede tem entre seus criadores o empresário Guilherme Leal, da Natura.
Durante a epidemia do novo coronavírus, o programa de formação política contínua da organização foi adaptado para as plataformas digitais.
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No movimento Acredito, o processo de seleção tem um filtro de diversidade: entre os apoiados, um terço deve ser de mulheres e um terço de negros. “Alguns partidos não estão preocupados em formar mulheres e as usam para candidaturas laranjas. Se os partidos não estão comprometidos, os movimentos sociais e políticos precisam estar”, diz a coordenadora do programa de lideranças do Acredito, Ana Flávia de Paula.
O movimento foi criado em 2017 pelo professor Felipe Oriá, o consultor José Frederico Lyra e a pesquisadora Tábata Pontes e ajudou a eleger a deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP) nas últimas eleições.
A escola de formação para políticos RenovaBR, criada pelo empresário do mercado financeiro Eduardo Mufarej em 2017, formou a sua primeira turma com 11% de mulheres em seu primeiro ano de existência. No programa mais recente, voltado para as eleições municipais deste ano, 30% dos alunos eram mulheres e 44% negros e indígenas.
“Esse é um esforço que daqui alguns anos vai ter alguma efetividade para que a gente consiga aumentar a participação feminina na política”, diz Sabrina Espírito Santo, responsável pela área de representatividade da RenovaBR.
Por causa da crise do novo coronavírus, a escola substituiu as palestras presencias da sua formação na modalidade de ensino a distância (EAD) por transmissões no Youtube. E o trabalho final da turma RenovaBr Cidades será focado em ações de combate e prevenção do Covid-19.