
O Divã de hoje é anônimo.
“Oano era 2008. A festa dos meus 50 anos estava bombando quando minha amiga soropositiva chegou. Linda, vestido acima do joelho, aquele sorrisão cativante. A danada era (e é) bonita mesmo. Corri para abraçá-la, ela segurou minhas mãos, rebolou ao som da música que tocava, descendo até o chão. Eu não tinha o mesmo fôlego, mas desci o suficiente para reparar, pela primeira vez, nas pernas dela. Não eram lisinhas, vi uns pequenos nódulos, uma veias saltadas e, no meio daquela celebração toda, o HIV apareceu na minha mente, apesar de eu ter prometido a mim mesma não lembrar dele naquela noite.
Vivendo com HIV desde 1999, portanto fazia 9 anos, uns três a menos que minha amiga, eu sabia que o vírus tinha tudo a ver com aqueles sinais. Já tinha visto marcas maiores, sim. Num congresso de jovens, eu as vi em forma de dois vincos profundos nas faces de uma menina que nasceu soropositiva. Aprendi que o nome daquele efeito era lipodistrofia, uma síndrome causada, segundo os médicos, pela conjunção de três fatores: o HIV, os antirretrovirais e a predisposição genética, e que consiste na má distribuição da gordura corporal. Perde-se a gordura em alguns membros (geralmente pernas, braços, rosto, glúteos) e ganha-se em outros (abdômen, para ficar no exemplo mais comum). Onde se perde, a pele fica mais fina, portanto as veias, mais visíveis.
Aquela menina com o rosto cavado me impressionou, mas, como eu não queria ficar lembrando, acho que joguei para o inconsciente. Depois, estudei a lipodistrofia e, como jornalista, cheguei a escrever sobre o tema. Fiquei aliviada ao descobrir que o governo paga cirurgias de reparação e preenchimento facial (mais tarde, constatei que o acesso a esses serviços não é fácil, mas isso é outro capítulo da novela ‘Eu e o HIV”).
Soube pelo meu médico que os remédios que eu tomava, mais novos e menos tóxicos, já não causavam aquele efeito. Com o passar dos anos, viriam drogas mais eficazes ainda. Além disso, a lipodistrofia se manifesta de formas diferentes e muitas vezes nem acontece. Verdade. Conheço mulheres de 30 e poucos que nasceram com o vírus, tomam remédios desde o útero materno e não têm um pingo de lipodistrofia. Preferi ser otimista e acreditar que teria a mesma sorte. Foi o jeito que eu achei de deixar o medo da lipodistrofia do tamanho de tantos outros medos, não tão grande a ponto de me apavorar.
Esqueci das pernas da minha amiga da festa. A boa forma dela continuou sendo referência, como um espelho refletindo a esperança de que a vida com HIV podia ser tão normal como a vida sem ele que um dia tivemos. Mas não pode. Não é. Um tempo depois, eu a reencontrei e ela me contou que havia feito algumas reparações, numa clínica particular, inclusive preenchimento facial. “Meu Deus, você tão linda, nem precisava”, eu disse. Precisava. A autoestima estava péssima, uns vincos no rosto, flacidez no bumbum. E o medão da lipodistrofia voltou. “Carai, será que eu não vou escapar dessa?”
Eu não escapei. Hoje, minhas pernas têm muito mais pequenos nódulos e veias visíveis do que tinham as dela. Além disso, elas afinaram, o quadril estreitou, fazendo aquele efeito triângulo invertido. Os braços também têm veias saltadas visíveis. No meu caso, a camada de gordura sob a pele de braços e pernas foi se alojar no abdômen, que era justamente onde eu mais precisava perder. A bunda, que nunca foi um bundão, murchou.
Falar da lipodistrofia parece fútil diante do repertório de questões complexas que fazem parte da história do HIV e mesmo dos meus 18 anos vivendo com ele. Já me disseram:
“Dê graças a Deus que você está viva”. Eu dou.
Eu perdi tantos amigos para a AIDS! O HIV começou a me atingir muito antes de entrar em mim e eu morria de medo dele, como toda uma geração que o viu surgir. Que bênção eu ter me descoberto soropositiva quando o diagnóstico já não era mais uma sentença de morte. O que é a lipodistrofia perto do que sofreram milhões de pessoas antes da chegada dos antirretrovirais? Mas, felizmente, estamos em outro contexto da doença. E eu falo dela porque é a face do HIV que mais se revela em mim. Eu a vejo toda hora em que me olho.
E mais. Durante minhas pesquisas sobre o assunto, outra descoberta foi a de que a lipodistrofia atrapalha muito a adesão ao tratamento. Conheci mulheres e homens que pararam de tomar os antirretrovirais para fugir dela.
Parar de tomar remédio eu nunca cogitei. Questionei se não seria o caso de procurar um serviço do SUS (Sistema Único de Saúde) e fazer algumas correções. Uma outra amiga fez uma lipoescultura e melhorou tanto o corpo, a autoestima. Ela até se reinventou noutra profissão. Foi com um bom cirurgião, num excelente hospital particular. Eu não poderia pagar, mas dizem que os resultados no SUS, quando a pessoa consegue ser atendida, também são satisfatórios. Conheço um rapaz que fez e ficou dez. Poderia colocar uma prótese no glúteo? Quem sabe uma lipo no abdômen? No rosto, não preciso. Pelo contrário, até elogiam a juventude de minha pele.
Mas, para falar a verdade, eu tenho certa preguiça (e medo) de cirurgias, de filas em serviços públicos, de discutir com médicos que consideram não ser gênero de primeira necessidade tratar lipodistrofia, porque viram uma cara mais assustadora da aids nos anos 80. Nunca fiz uma plástica pois me apavora a ideia de ser cortada, redesenhada. Já vi amigas, positivas e negativas, sofrerem tanto na recuperação desses procedimentos! E se ficar pior? Pensando bem, perto dos 60, estou numa idade em que o corpo envelhece mesmo. Então, assim como lá atrás eu me apeguei à esperança de que a lipodistrofia não ia me atingir, hoje me apego à de que não vai piorar e se ficar assim está de bom tamanho. Mas não dou trela para ela.
Também aprendi que a forma mais eficiente de combater a lipodistrofia é pegando pesado na malhação. Antes, eu só fazia ioga. Hoje, faço musculação todo dia. E caminhadas intercaladas com pequenas corridas. Em menos de um ano, ganhei massa muscular, as coxas engrossaram, a panturrilha cresceu, perdi gordura no abdômen, dei uma afinada na cintura, a musculatura do glúteo está reaparecendo aos pouquinhos. Meu corpo está recuperando a harmonia. Ou será que eu é quem estou?
O que a lipodistrofia me atrapalha na prática? Bem, eu não escondo meu corpo. Eu escondi o HIV de muita gente para não causar sofrimentos desnecessários. Tenho horror à ideia de causar dor. Mas o meu corpo, com veias ressaltadas, pernas mais finas ou grossas, eu não vou esconder. Claro que, na hora de sair, escolho roupas que disfarçam, como sempre fiz. Cobrir braços e pernas eu não cubro. Sou calorenta. Não sei se as pessoas reparam nas veias. Só uma vez um tio, sentado do meu lado, eu de short, me disse: “Você está com muitas varizes, hein!” Outras pessoas devem achar o mesmo: que as varizes me castigam.
No meu último namoro, tirar a roupa e transar não foi um grande problema porque eu e o cara fomos construindo esse momento. Ele sabia do HIV e se mostrou carinhoso e sensível. Já faz um bom tempo que não transo, nem saio com ninguém e estou desconfiada de que vou ter problemas em mostrar meu corpo quando isso voltar a acontecer. Mas deixa acontecer. Depois eu conto.
No mais, eu tomo remédios todos os dias, três pílulas, uma de manhã e duas à noite há uns 11 anos, sempre o mesmo esquema.
Já conversei com minha médica se não seria o caso de trocar as drogas por umas mais evoluídas, exatamente por causa da lipodistrofia. Não é o caso. Infectologistas consideram que em time que se está ganhando (lembram do “dê graças a Deus por estar viva”) não se mexe.
Outros efeitos colaterais? Eu tenho gordura no fígado, por causa da toxicidade das drogas. Faço exames regularmente e não posso exagerar na bebida alcoólica. Malhar todos os dias tem me ajudado a melhorar também este aspecto da minha saúde.
Nesses 18 anos de HIV, eu me separei do pai dos meus dois filhos — sim, fui infectada dentro de um casamento monogâmico, mas a culpa da separação não foi do HIV, ela ia acontecer de qualquer jeito. Continuando, criei dois filhos que, felizmente, não têm HIV e hoje são adultos maravilhosos. Um deles me deu uma neta, a riqueza de nossa família. Namorei, viajei, cuidei de minha mãe que teve um câncer violento e sofri muito com a morte dela – ainda sofro – , mudei de cidade, tive a sorte de ter amigos e irmãos sempre de mãos dadas comigo e acho que devo a eles a vocação que tenho para ser feliz, querer viver sempre mais e melhor, amar a vida, enfim, mesmo que ela nunca mais seja igual foi antes. Mas é bonita!
Aproveitando que amanhã celebramos o Dia Internacional da Luta Contra a AIDS, quero sugerir a todos e todas que façam o teste de HIV. Se der positivo, garanto que vai ser mais tranquilo do que foi comigo. Há novas drogas disponíveis na primeira linha de tratamento, ou seja, para quem vai começar. São mais potentes e menos tóxicas, segundo comprovado em países onde são usadas há mais tempo.
Ai, eu fico sempre muito emocionada todo dia 1º de Dezembro e sempre choro pelas perdas causadas pela AIDS e também de emoção pelas conquistas. Quero sair deste divã citando uma das recentes conquistas que mais me emociona: a que permite às mães soropositivas engravidarem por métodos naturais e darem à luz sem infectarem seus bebês. E que venha a cura!”
* As opiniões aqui expressas são da autora e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
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