Profissionais negros continuam recebendo menos que os brancos no Brasil, segundo a pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, divulgada pelo IBGE na semana passada. E isso independe do nível de escolaridade. Quanto mais alta a posição (e consequentemente o salário), menor é o número de profissionais negros (soma de pretos e pardos, na classificação do IBGE).
Para as mulheres negras, o cenário é ainda pior. Elas receberam, em média, 44% dos salários dos homens brancos no ano passado – ou seja, menos da metade. Os homens brancos ocupam o topo da escala de remuneração no Brasil, seguidos pelas mulheres brancas, que ganham mais que os homens e mulheres negras. Isso acontece porque boa parte nem chega ao mercado de trabalho formal e, quando chega, ocupa posições em que recebem menos.
Quando foi contratada como estagiária de RH (recursos humanos) pelo Google Brasil, há seis anos, a jornalista Christiane Silva Pinto se deparou com a ausência de pares negros. Com escritório na avenida Faria Lima, um dos endereços mais caros de São Paulo, o Google mal recebia currículos de profissionais negros. Um dos requisitos básicos exigidos pela empresa já excluía de cara muitos deles: a exigência do inglês.
Disposta a não ser a única mulher negra que chegou lá, Christiane fundou o AfroGooglers e durante os cinco anos em que atuou no RH, trabalhou para colocar mais profissionais negros dentro de casa. Neste ano, ela assumiu a gerência de marketing do Google Brasil.
Ela conversou com a Revista AzMina sobre como é preciso mudar o processo de contratação e a cultura das empresas se elas quiserem, de fato, ter mais diversidade no seu quadro de funcionários. Confira os principais trechos da entrevista.
Revista AzMina: Hoje ainda vemos poucos profissionais negros bem posicionados dentro do mercado de trabalho. Quais barreiras eles encontram?
Christiane Silva Pinto: Esse é um problema maior do que o mercado de trabalho, é um problema do Brasil. A falta de representatividade nas empresas passa por várias questões, até pelo prédio onde elas estão, pelos seguranças na porta, tudo isso já é um ambiente super intimidador e não convidativo para as pessoas negras. Você chega num prédio como esse, geralmente só os seguranças e as faxineiras são negros, todo mundo é branco. Além disso, tem a falta de acesso à educação e de referências, de exemplos.
Muitos negros hoje são os primeiros de suas famílias a entrarem na universidade, a estarem acessando esses espaço. Eles não têm ninguém na família que já tenha passado pelo mundo corporativo, que saiba se comportar numa entrevista, que possa dar dicas de como se portar no mundo corporativo, do que é esperado, o que vestir. Falta das coisas mais básicas, como o dinheiro do transporte, até as mais complexas, como saber falar inglês. É comum ouvir uma pessoa branca falando “o meu pai é engenheiro, por isso eu escolhi ser também”. Essas pessoas já vêm de famílias que ocupam espaços tradicionais no mercado. As pessoas negras não. Não temos referências dentro nem fora de casa, assim como em outras áreas.
AzMina: Empresas costumam justificar a falta de contratação de negros por não receberem currículos desses profissionais. Por que isso acontece?
Christiane: As empresas querem ter mais diversidade, mas ficam paradas no discurso de que não chegam currículos, que não conseguem encontrar esses profissionais no mercado. É preciso adaptar as vagas. A questão do inglês, por exemplo. Poucos negros têm acesso a aulas de inglês. A gente viu que isso excluía muita gente e removeu o inglês como requisito mínimo para alunos negros do nosso programa de estágio.
Do outro lado, há também a questão da autoestima e confiança. Há pesquisas que mostram que para uma mulher se aplicar para uma vaga de emprego, ela precisa cumprir pelo menos 90% dos requisitos da descrição da vaga, enquanto homens se aplicam se cumprirem 60%, então eles acabam se candidatando mais aos cargos. Não temos esses dados para pessoas negras, mas imagino que seja ainda pior do que entre as mulheres. Negros não se aplicam porque acham que não é para eles. Eu mesma passei por isso, quase não me apliquei para a vaga no Google porque achava que não ia entrar.
Leia mais: Rompendo o ciclo familiar de trabalho doméstico
AzMina: O que o Google tem feito para atrair profissionais negros?
Christiane: Vendo que não chegavam currículos, não chegavam profissionais para as entrevistas, a gente tomou uma postura ativa de ir buscar esses profissionais. O primeiro passo foi uma parceria com a Faculdade Zumbi dos Palmares [localizada em São Paulo]. Recebemos o reitor para uma reunião com o presidente do Google. A gente nunca tinha entrevistado nenhum estudante de lá, por exemplo. A área de atração de talentos, em que eu trabalhava, começou a ir até as universidades que têm maior parcela de estudantes negros para conversar com eles, fazer eventos e programas para atrair os estudantes para o escritório do Google e contar mais sobre oportunidades de carreira, como é o processo, questões de cultura e como se preparar.
AzMina: O que mais vocês mudaram dentro da empresa?
Christiane: Foi um trabalho 360 graus, não só do RH, mas que envolve a empresa inteira e a sua comunicação. Não queremos apenas contratar mais negros, mas pensar essa questão dentro do negócio. Se nossos serviços são para o mundo inteiro, a gente precisa refletir isso nos nossos produtos e campanhas. As campanhas publicitárias do Google agora têm atores negros, por exemplo. Nos eventos, a gente começa a ter especialistas negros para falar. Com isso, começamos a criar no imaginário das pessoas que, sim, o Google também é para os negros.
AzMina: Como foi o processo de criação do AfroGooglers?
Christiane: O Google, assim como muitas empresas multinacionais, têm essa cultura de grupos formados voluntariamente pelos funcionários. Quando eu entrei como estagiária, comecei a me envolver com um monte de projetos e, na época, eu queria muito entrar no grupo de pessoas negras, mas ele não existia no Brasil, só nos Estados Unidos. Até que eu comecei a me envolver mais e mais com atividades relacionadas à inclusão dentro do Google no Brasil. O pessoal do Black Googler Network ficou sabendo e me chamou para fundar a célula brasileira, que decidimos chamar de AfroGooglers. Em 2014, o grupo foi lançado com uma palestra da Sueli Carneiro [filósofa, escritora e ativista antirracismo] durante o mês da diversidade. No começo, o grupo era formado por cinco pessoas e eu era a única negra, as outras quatro pessoas eram aliados brancos. Mas hoje o AfroGooglers tem uma boa mistura, com o aumento do número de pessoas negras tomando o protagonismo.
Leia também: Mulheres negras usam estratégias de quilombo na política
AzMina: E qual é atuação do AfroGooglers?
Christiane: No começo, nós focamos muito na educação e conscientização internas, porque não tinha negros no Google, nunca tinham falado desse tema, nunca tinham estudado, nunca tinham discutido racismo. Questões de justiça racial não faziam parte do vocabulário dos temas que o público interno discutia ou pensava sobre. Hoje o AfroGooglers tem três pilares: conscientização interna; comunidade, braço que atua na comunidade externa ao Google; e o desenvolvimento de carreira.
AzMina: O que mudou na empresa após a criação do AfroGooglers?
Christiane: O número de funcionários negros aumentou bastante nesses cinco anos de atuação [a empresa não divulga os números da operação de cada país, apenas que a contratação global de negros e latinos cresceu 4,8% em 2018]. Nós do AfroGooglers somos de diferentes áreas e o grupo é formado por profissionais negros e aliados. Essa composição ajuda que essa educação sobre vieses, preconceito e estereótipos seja levada para dentro das áreas da empresa, para o negócio, para a atividade principal de cada um aqui dentro da empresa, para que a questão racial não fique só na filantropia, no trabalho com a ONG.
Sabemos que o nosso público interno é majoritariamente branco. A gente do AfroGooglers não passa a mão na cabeça de ninguém, a gente não alivia o assunto pra ninguém. Mas somos estratégicos nas nossas ações e comunicação. A gente fala de uma forma que vai trazer esse aliado para junto da gente, para trazer mais apoio. A gente divide as nossas dores, mas isso a gente faz entre nós. Com os aliados, a gente procura formas de criar empatia, de discutir raça e branquitude.
Leia mais: Você se incomoda em frequentar lugares em que só há brancos?
AzMina: Você falou bastante dos aliados. Poderia dar exemplos práticos de como pessoas brancas podem ser aliadas da luta antirracista?
Christiane: As pessoas têm preguiça de sair da zona de conforto, muitos evitam atuar no tema usando o conceito de lugar de fala como desculpa. Mas essa desculpa não é mais aceita. Primeiro, as pessoas têm que se educar e sair da zona de conforto, entender que não vai ser confortável falar sobre o tema, saber que vai errar antes de acertar. O aliado precisa entender que sentar em cima do lugar de fala como desculpa para não participar é pura preguiça. O primeiro passo é educação, descolonizar o pensamento. Vai ler livros, vai assistir videos, vai ver uma série que trate do tema, o que seja que te dê músculo para começar a discutir raça. Tá com medo porque não é o seu lugar de fala? Vai ler O que é lugar de fala?, da Djamila Ribeiro!
AzMina: Como pessoas brancas podem ser impulsionadoras de profissionais negros dentro das companhias?
Christiane: Eu bato muito na tecla de que não basta não ser racista, tem que ser antirracista, como disse Angela Davis. E não só na empresa, mas no âmbito pessoal. Encarar a coisa de forma sistêmica. É parar para escutar as experiências e o que as pessoas negras estão falando. Elas não estão apontando o dedo pra você, estão apontando o dedo para o sistema. É preciso sair dessa individualização de “eu não sou racista”, “eu sou uma boa pessoa” e ter atitudes antirracistas. Pode ser se tornando um apoiador ou patrocinador de um profissional negro, não só um mentor. Não é sentar com o profissional negro e dizer o que ele tem que fazer e sim sentar com essa pessoa e escutá-la. Não é falar com ela, mas falar bem dela para outras pessoas, dar visibilidade para o trabalho, ser um apoiador de fato. A minha carreira decolou quando eu comecei a ter apoiadores. Ser antirracista é um pouco disso, de entender que muitas vezes você vai deixar de aparecer para ceder o protagonismo e a visibilidade.
Leia mais: Artistas negras assumem as rédeas de suas próprias narrativas
AzMina: Você citou importantes referências de mulheres negras. Quais outras referências você traria?
Christiane: Para começar, Mulher, Raça e Classe, da Angela Davis. O que é lugar de fala?, da Djamila Ribeiro. E Sejamos todos feministas, da Chimamanda Ngozi Adichie. Para se aprofundar, eu sempre falo da bell hooks, porque ela trata as questões negras com uma linguagem fluida e bastante acessível. No campo literário, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. E os exemplos que você vai encontrando na vida e vão virando referência para você. A empresária Eliane Dias é uma super referência para mim, assim como a Adriana Barbosa, da Feira Preta. Também assisto muitos youtubers negros, adoro a a Nataly Neri, por exemplo.
Nota da redação: AzMina foi um dos projetos selecionados para receber apoio financeiro pelo Desafio de Inovação da Google News Initiative. O Google, porém, não interfere nas escolhas editoriais da revista.