Na última semana, o Ministério da Saúde publicou uma portaria que trata da inclusão de mais um método anticoncepcional no SUS, o implante subdérmico contraceptivo. No entanto, a portaria restringe a implementação do método a um grupo específico de mulheres: em situação de rua; com HIV/AIDS em uso de dolutegravir; em uso de talidomida; privadas de liberdade; trabalhadoras do sexo; e em tratamento de tuberculose em uso de aminoglicosídeos.
A explicação para a restrição do método a um grupo prioritário partiu de avaliação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), que inicialmente recomendou que o método não fosse incorporado amplamente no SUS, com justificativa pouco transparente sobre o impacto orçamentário, mesmo afirmando que as evidências encontradas se mostravam favoráveis à adoção do método.
O segundo relatório do Conitec, que recomenda a incorporação do método apenas para os grupos específicos citados acima, baseou-se em uma consulta pública realizada sobre o tema que também tem sido alvo de questionamentos. O fato de as perguntas que compuseram esta consulta não estarem abertamente disponíveis nos impede de avaliar se houve qualquer viés em sua formulação que possa ter influenciado as respostas recebidas. Além disso, o que nos parece ainda mais grave é que as representações de grupos que seriam diretamente impactados pelas políticas não participaram das discussões que resultaram na Portaria 13.
#EugeniaNão
Quem conhece o histórico de nosso país sabe a importância de estar atento a políticas eugenistas, para não repetir a tragédia racista das esterilizações compulsórias em massa dos anos 1990 – e que seguem acontecendo, como no caso de Janaína Querino, em 2018. Não à toa, as representantes dos grupos diretamente afetados pela portaria foram as primeiras a se manifestar de forma contrária à sua implementação. Movimentos de trabalhadoras sexuais, mulheres que vivem com HIV/AIDS ou tuberculose, pessoas em situação de rua, privadas de liberdade, feministas e movimentos pelos direitos sexuais e reprodutivos publicaram nota conjunta exigindo a revogação da medida.
A problemática não é a incorporação do método em si na política de saúde, que tem alta eficácia e segurança (como detalharemos mais adiante), e cuja oferta inclusive foi reivindicada por movimentos de mulheres e pessoas com capacidade de gestar. O que se questiona é sua vinculação a uma portaria que seleciona grupos de mulheres sem seguir nenhum critério de saúde pública, sem considerar se essas são as mulheres que mais precisam ou que por alguma razão encontram dificuldade de usar os outros métodos já disponíveis. Se não podemos fornecer para todas, por que especificamente para essas? Selecionar essas mulheres já discriminadas parece sugerir que o Estado tem um interesse particular em, no mínimo, favorecer a sua não reprodução.
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Enquanto para algumas mulheres a maternidade é imposta, para outras é negada. A luta por justiça reprodutiva ecoa em todas nós: para que possamos decidir não ter filhos (seja pelo uso de contraceptivos de nossa escolha ou de interrupção segura da gestação quando for o caso), e para que tenhamos o direito de ter filhos quando assim decidirmos, e possamos criá-los em ambientes saudáveis e livres de violência¹.
Mas o que é e como funciona o implante?
O implante subdérmico de etonogestrel é um pequeno bastão (do tamanho de um palito de fósforo), inserido na parte interna superior do braço da usuária. É um método reversível e de longa duração para prevenção de gravidez não-planejada, que age através da liberação de hormônio ao longo de 3 anos.
Os procedimentos de aplicação e retirada do implante são considerados simples, não-cirúrgicos, e exigem habilidades mínimas de um profissional da saúde. Sua inserção pode ser mais simples do que a do DIU de cobre, que atualmente é o único método reversível de longa duração disponível no SUS. Apresenta uma das mais altas taxas de eficácia (falha de aproximadamente 0,1%), equiparando-se ou até superando, neste quesito, métodos irreversíveis como vasectomia e laqueadura. Além disso, o método não exige exame pélvico para ser aplicado nem prejudica a fertilidade das usuárias após sua retirada.
Como, após inserido, o implante age por meio da liberação lenta e constante de hormônio, não depende que a usuária lembre-se e tenha condições de fazer o uso recorrente de forma correta, como é o caso da pílula anticoncepcional, que deve ser tomada diariamente, ou da camisinha, que precisa ser usada em cada relação sexual. Os efeitos colaterais costumam ser similares aos de outros métodos que utilizam somente um hormônio, como sangramentos de escape, dores de cabeça, acne e ganho de peso. Estudos indicam que este método, como o DIU, tem as taxas mais altas de satisfação e continuidade² das usuárias, e, segundo as Nações Unidas, junto à camisinha feminina e à contracepção de emergência, tem o potencial de evitar cerca de 230 mil mortes maternas no mundo em um período de 5 anos.
#AcessoUniversalSim
Como não há justificativas baseadas em evidências de saúde pública e direitos sexuais e reprodutivos que expliquem a definição de tais grupos prioritários, a revogação da portaria torna-se urgente. Proteger grupos historicamente vulnerabilizados de novos estigmas e políticas eugenistas deve ser uma prioridade. Se há qualquer prerrogativa de que a questão orçamentária é uma barreira para que o método seja ofertado de forma integral para mulheres e pessoas com capacidade de gestar em idade reprodutiva, o cálculo deve levar em conta também as altas taxas de continuidade e satisfação associadas ao método, além da consequente diminuição de mortes maternas e abortos induzidos.
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Mesmo que seja comprovado um impedimento orçamentário para a disponibilização ampla do implante subdérmico, a criação de uma nova medida deveria estar associada a critérios de priorização não-discriminatórios, como o foco em pessoas que não se adaptaram ou não podem utilizar o DIU ou os demais métodos contraceptivos atualmente ofertados pelo SUS. O que necessitamos é de uma política de saúde que priorize e garanta o direito de cada uma tomar decisões informadas sobre sua própria vida reprodutiva.
[1] Collins, Patricia Hill; Bilge, Sirma. Interseccionalidade. Boitempo Editorial, 2021.
[2] McNicholas, C, et al. (2014). The Contraceptive CHOICE Project round up: What we did and what we learned. Clinical Obstetrics and Gynecology 57(4). Peipert, J, et al. (2011). Continuation and satisfaction of reversible contraception. Obstetrics & Gynecology 117(5).
Ilana Ambrogi é médica de família e comunidade, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e doutora em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva pela Fiocruz.
Nara Menezes é jornalista e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília. É comunicadora na Anis – Instituto de Bioética e Promotora Legal Popular do Distrito Federal.